sábado, julho 08, 2006

"O Brincar como uma especificidade da clínica com crianças”

Destacar o brincar como uma das condições específicas no trabalho com crianças é conferir importância ao método que deu origem à psicanálise com crianças.
A psicanálise de crianças deve sua existência à introdução do método lúdico, através do qual Melanie Klein ampliou o campo da psicanálise à criança.
Nos primórdios da psicanálise com crianças houve entre Anna Freud e Melanie Klein uma batalha teórica. Anna Freud considerava que as crianças, não tinham maturação psíquica para fazer psicanálise, acreditava, inclusive, que sua prática poderia ser maléfica, pois através de seu poder de remover o recalque, a psicanálise poderia fortalecer tendências impulsivas e negativas. No livro “O tratamento psicanalítico de crianças” (1926) Anna Freud defendeu a inaplicabilidade da psicanálise às crianças, utilizando o argumento que os pais ainda existem como objetos de amor na realidade e não na fantasia, e que essa ligação dificulta a transferência com o psicanalista. Para Anna Freud restava ao analista de crianças adotar uma postura pedagógica, orientadora, ganhando a confiança da criança para conduzi-la ao bom caminho da sublimação dos impulsos sexuais.
Na tentativa de viabilizar a psicanálise de crianças Melanie Klein estabeleceu que a diferença entre a psicanálise de crianças e a psicanálise de adultos está no método e não em seus princípios básicos. Klein propõe uma equivalência entre associação livre e o jogo lúdico, considerando-o como um campo transferencial fértil ao trabalho analítico.
A discordância entre as duas teóricas teve fim com o recuo de Anna Freud que abriu mão da orientação pedagógica ao admitir sinais de transferência na análise com crianças, reconhecendo que os princípios básicos da psicanálise poderiam ser estendidos à infância.
Em 1980, no auge do pensamento lacaniano no Brasil, a psicanálise com crianças foi posta a prova. Para Lacan a criança é um ser analisável, já que é um sujeito, com pelo menos uma promessa de estrutura. Porém, o jogo, o brincar, especificidades desta clínica, não é considerado substituto das associações livres. Houve então um descompasso na clínica com crianças, enquanto alguns tenderam a substituir o discurso da criança pelo uso do brinquedo, outros, em oposição radical a essa prática, direcionaram seu interesse apenas para expressões verbalizadas das crianças e negligenciaram o brincar.
Segundo Elza Santa Roza, a experiência psicanalítica com a criança acontece numa articulação do brincar com a verbalização. Ela conceitua o fenômeno lúdico situando-o no campo da linguagem. Considera que as crianças, mesmo não sendo seres mudos ou pré-verbais, apresentam tendência à ação e limites nas suas possibilidades de verbalização. Geralmente, não se dispõem a deitar no divã e a sair fazendo associações livres. Fazer essa exigência seria impossibilitar a psicanálise à criança, propõe então deixar a criança livre para se expressar da maneira como lhe convém, que ela fale de si da forma que puder.
Para Winnicot, o brincar é uma fonte de diálogo com as crianças: “Quando a criança não é capaz de brincar, é preciso trazê-la para um estado em que ela possa brincar”
Como afirma Roza:
“É através dele (o brincar) que se processa a organização do sujeito, que nasce e se desenvolve a linguagem, que se dá o aprendizado e o conhecimento do mundo. Via privilegiada de expressão e de apreensão da realidade, o brincar permite o acesso ao simbólico a aos processos de complexificação da vida” (p.20)

· Conceito
O brincar é uma forma universal de comportamento característico da infância, presente em todas as formas de organização social, das mais primitivas às mais sofisticadas. É uma atividade que transcende às necessidades biológicas, sendo um elemento da cultura cuja função é de representar a realidade. Está circunscrito num espaço e tempo, e apresenta regras. A brincadeira não está diretamente submetida ao brinquedo, porém, muitas vezes, um objeto pode sugerir o jogo ou mesmo ser completamente transformado para se adaptar aos interesses de uma brincadeira previamente estipulada. Um jogo pode ser adiado e até ser considerado supérfluo, porém, tem como característica fundamental a liberdade, deste modo, não poder ser imposto, é voluntário. Se virar uma obrigação, já não será mais uma brincadeira. Há, portanto, uma estreita ligação do brincar com o desejo.
Um dos motivos associados à tensão que o jogo pode provocar está ligado à incerteza, ao acaso que é inerente ao ato de se jogar. A imprevisibilidade pode fazer vínculo com a dimensão radical do ‘poder do destino’, e assim motivar reações passionais extremadas.
A característica mais instigante do ato da brincadeira é que ela é uma atividade não séria, uma evasão temporária da realidade e, ao mesmo tempo, um momento da mais absorvente seriedade. Momento em que há um distanciamento da realidade sem, no entanto, perdê-la de vista. O brincar é uma pré-disposição humana para a ilusão, ocorre no movimento pendular entre a magia, o irreal e a realidade, sendo uma conciliação entre o princípio da realidade e o principio do prazer.
· Brincando na psicanálise
O brincar é capaz de engendrar sentidos, produzir associações e assim proporcionar uma articulação com o significante lingüístico. É uma atividade que proporciona trocas entre os sistemas inconsciente/pré-conciente através da expansão da possibilidade de expressão da criança no plano simbólico, permitindo novas significações. Nesse sentido, o brincar é considerado constituinte da realidade psíquica, se aproxima dos devaneios e da criação artística mais do que do chiste e dos sonhos e não se restringe a expressão da sexualidade infantil. Nele estão presentes mecanismos como a figuração, a condensação, o deslocamento e o simbolismo. Todavia, o brincar, embora seja determinado por desejos inconscientes não é uma formação do inconsciente, nele a incidência da elaboração secundária é predominante, estabelecendo coerência e ordenação no seu conteúdo manifesto.
· O brincar e a interpretação
Para Winnicott a análise do brincar não é para ser restringida ao conteúdo do jogo. Brincar é, antes de tudo, um movimento, a ação de uma engrenagem que girará infinitamente no sentido de originar interpretações
Segundo Ferreira (1999) o jogo que não tem uma significação a ser desvelada pelo analista, mas sim faz irromper o significante. É o enlace entre o brincar e a palavra que interessa na clínica. Não se trata de excluir o brinquedo, mas tratá-lo como significante e não como símbolo. O jogo não tem significado, mas pode apresentar um sentido, e este só pode ser buscado na própria ‘expervivência’ da criança e articulado no encadeamento significante produzido no seu discurso. O brincar já é uma interpretação da criança em relação a sua realidade.
Mannoni (1995) acredita que dar às crianças a possibilidade de pintar, de inventar um mundo segundo suas idéias, permite que elas possam se expressar numa linguagem sem palavras o que as mortificou. O essencial é que possam encontrar meios de se exprimir. De fato, é importante que o analista não se apresse em dar um sentido de imediato, nem procure prematuramente reconstruir fatos, pois, a área de jogo, tem uma função decisiva por constituir o lugar onde o sujeito se interroga sobre o que ele é.
Segundo Roza, a intervenção do analista objetiva o andamento da cadeia significante. As observações do analista não se restringem ao plano da palavra, podem estar inseridas no nível do próprio jogo. Isto é não se limitar em interpretações da brincadeira, mas, sobretudo, interpretar na brincadeira. Brincar com a criança, sabendo que o que se está fazendo é coisa muito séria.
Após usar vários autores em muitos parágrafos para falar sobre o brincar, lanço mão do poeta que com poucas palavras traduz mais claramente esta expressão.

“O POETA é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente”
Fernando Pessoa

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