sábado, julho 08, 2006

LACAN E A ARTE

Lacan não se contenta em apenas sustentar o lugar de aprendiz, ‘colegial’, em relação à arte, como supunha Freud. Afirma sermos, nós analistas, frente à arte, “catadores de migalhas”.[1] Lança mão do conceito de Coisa ou das Ding para articular a fórmula que irá, ao final, ordenar a função da sublimação. O termo já está em Freud[2] e Lacan o retoma como um conceito que designa o que aparece como estranho e alheio no ponto inicial do psiquismo.
Caminhando na direção da Coisa o sujeito reencontra outros objetos, já que, em última instância não existe O Objeto que suture sua falta originária. Lacan nos diz que Das ding escapa a significação, é indizível, “...essa Coisa, (é) o que do real (...) padece do significante”[3], o vazio no centro do real. A Coisa é a falta comum em todos. A Coisa é fundadora desejo. É na falta que a Coisa é reencontrada e remetida sempre a outra coisa.
Neste momento é necessário a introdução do conceito de objeto a, objeto causa de desejo, que diferentemente de das Ding, a Coisa, tem uma vertente real, outra simbólica e uma imaginária[4]. Razão pela qual Lacan o situa, no nó borromeano, naquela região de interseção dos três registros. Enquanto das Ding é o objeto da pulsão de morte, a face real do objeto a. Porém nós só temos acesso ao objeto a em sua vertente simbólica ou imaginária.
A Coisa será sempre representada por um vazio, nos diz Lacan ao teorizar sobre a sublimação. O autor retoma a proposta de Freud de que uma neurose obsessiva seria a caricatura da religião, um delírio paranóico um sistema filosófico distorcido (posteriormente o aproxima da ciência) e uma histeria uma obra de arte deformada[5] – e propõe que, em toda forma de sublimação, o vazio, como índice da Coisa, será determinante, permanecendo no centro; sublimar é elevar o objeto à dignidade da Coisa.
Lacan indica que há três modos diferentes de sublimação, três modos diferentes de se relacionar com o vazio: o da religião, da ciência e da arte.
No caso da ciência é necessário não se incorrer na precipitação de simplesmente dizer que o que há é a Verwerfung (foraclusão) do vazio. Mesmo sabendo que isso não é uma inverdade, é necessário maior rigor teórico. Em “Ciência e verdade” Lacan faz uma proposta radical ao situar o mesmo sujeito que foi para a ciência, em sua concepção moderna, como sendo o da psicanálise. Ele afirma que “o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência”[6]. O autor retoma os acontecimentos do século XVII em que Descartes através do cogito proclama um ‘rechaço de todo saber’, mesmo momento histórico que Galileu funda a ciência moderna instituindo uma fenda entre saber e verdade. O sujeito do inconsciente nasce ali naquele momento cindido. Não haverá mais, de agora em diante, a Verdade, agora ela vale como algo a ser refutado, a certeza estava para sempre banida, é não-toda. Enfim, foi a ciência que pela primeira vez tratou o real pelo simbólico. Entretanto, para se afirmar como um saber, a ciência precisou concretizar conceitos matematizados, lógicos sobre o real e deixou de lado sua descoberta, trazendo para seu centro outros referentes. Assim, o furo real que fora denunciado pela ciência ficou externo a ela, como algo sabido, porém paralelo.
No caso da religião, baseado no comportamento obsessivo, Lacan diz, inicialmente, que, há algo da ordem da evitação do vazio. Porém, não se satisfaz com essa explicação e prefere dizer que o que ocorre é um “respeito” a esse vazio. Esse respeito é traduzido como uma operação de deslocamento (Verschiebung)
Já a arte, para Lacan caracteriza-se por um certo modo de organização em torno do vazio[7]. Vazio que no centro do vaso, a partir da função artística mais antiga – a do ceramista – é exemplo do mistério da criação[8]. A arte tem como combustível esse vazio. O mesmo que a ciência ejetou e a psicanálise colocou em seu centro, a arte tem no início, no antes dela, como também em seu final, pois que ela não faz nada além do que expô-lo.
Antes do que é escrito pelo autor, o que se tem é um papel vazio. Do pintor uma tela em branco, do escultor um nada. Há um nada antes da criação artística. Um nada que incomoda, que pulsa, que insiste. Porém, ao terminar, a obra artística também não oferece consistência. Quando ela acaba, vira um resto, algo que não deu conta de dizer a que veio. A percepção de que a obra não diz tudo, que sempre falta algo, parece ser o motivo que leva o artista a nunca parar de criar, sempre outras obras igualmente insatisfatórias.
Qualquer objeto, e não algum idealizado, serve para ser elevado a dignidade da Coisa. Estranhamente, no mesmo momento em que o objeto é elevado à dignidade da Coisa é também destituído de sê-la. O objeto artístico “é instaurado numa certa relação com a Coisa que é feita simultaneamente para cingir, para presentificar e para ausentificar”[9]. A arte presentifica a ausência, expõe a falta, é o resto exposto que faz restar.
Lacan não tem problemas em concordar que as obras de arte imitam os objetos que elas apresentam, porém, explica que elas imitam sem representá-los, elas fazem outra coisa do objeto[10]. Para melhor explicar essa afirmação lembra Cézanne e suas maçãs. Quando ele as pinta, faz bem mais do que imitar maçãs, não deixa de presentificá-las, mas ao mesmo tempo ausentifica-as como maçãs, as tornando outra coisa. O artista ao criar, renova a relação da arte com o real, faz surgir o objeto em uma renovada dignidade.
Para expor a arte em Lacan escolhi dividi-la em três aspectos, a saber: 1º Arte como um Bem; 2º Além do Bem: o Belo; 3º Mais além do Belo: o Sublime e 4º Elo: A Arte Sinthomática. Esta separação só tem sentido didático. Apesar de possuírem fundamentos diversos elas não são nem excludentes e nem tão pouco possui cada uma delas a pretensão de reter o entendimento global da arte. Proponho que sejam lidas da mesma forma como se olha um caleidoscópio que transmuta o objeto visto pelo giro que é efetuado.
1º Arte como um Bem
Na primeira dimensão, a do bem, a arte é valorizada como um produto, um objeto a ser comprado, de valor comercial que obedece às leis de mercado tanto quanto qualquer outro objeto, estando inserido nas relações de poder dominantes na sociedade. Neste sentido a arte serve ao tamponamento do desejo, ao engano da satisfação. A arte como um bem de consumo, usada para ser exercício de poder e prestígio é, no mínimo, contraditória. Depondo contra si própria, a arte descaracteriza-se em sua essência, já que, em essência ela comporta o vazio. A expressão flagrante desta dimensão é a do carro último tipo que pintado em uma fábrica recebe a assinatura de Picasso. Eleva-se o objeto a dignidade da Coisa ou está se rebaixando a Coisa ao nível do objeto? Tudo é acessível para quem tem como comprar. Tudo está à venda e a felicidade é possível, embora custe caro. Princípios da sociedade que perverte a arte moldando-a ao discurso capitalista.
Se a moral está corrompida, menos ainda estamos submetidos a preceitos éticos na perspectiva da psicanálise. A ética, estando para além da moral não obedece a imposições sociais superegóicas. Aponta para o universal da diversidade, enquanto que o consumismo globalizado está disfarçado na ideologia do direito de ser diferente. A sociedade capitalista parece ter se apropriado das formas de rebeldia possíveis, no comportamento e na arte. Na contemporaneidade a arte parece tanto virar moda, quanto à moda muitas vezes se intitula arte. Ao contrário de outros tempos onde se exilavam os rebeldes anti-sociais, hoje se ‘fagocita’ a expressão revolucionária incorporando-a rapidamente.
Não é de hoje que a discussão sobre a crise na arte anima calorosos debates. Sem entrar no julgamento a respeito do valor artístico de suas atuais expressões, o que podemos perceber é que, sob esse conflito, vemos nascer uma arte que nos presenteia com o ininteligível, como se quisesse nos reimputar o espaço vazio que parece estar sendo foracluído pela ideologia de mercado. O que demonstra que a arte não pode manter uma relação harmoniosa com a sociedade capitalista.
A arte contemporânea cria objetos que estremecem os conceitos antes aceitos sobre o que é arte; engendra, mais do que criação, a dúvida, a discórdia, a impossibilidade de uma categorização consensual da arte; busca, com sua insubordinação, esburacar as certezas do mestre capitalista[11] na tentativa de recolocar a Coisa em posição central de falta e de se ver livre do enquadramento de ser um bem.
A denúncia da arte é que à falta comum a todos não se responde com um bem comum, posto que não há. Mesmo que não houvesse a exclusão social, a felicidade não poderia ser alcançada no próximo shopping, ou mesmo em nenhum lugar. O capitalismo, ou mesmo qualquer ideologia política propõe o bem para todos. E por isso mesmo se apresenta para o sujeito como uma barreira a seu desejo.[12] A arte não tem como efeito o bem do sujeito, aquele bem para próximo que também a psicanálise questiona – o bem concebido como o bem natural, na busca de uma harmonia a ser reencontrada no caminho da elucidação do desejo. Querer o bem do próximo como se ele fosse você mesmo é um contra senso, já que o anula como outro.
A relação da arte com o capital é tensa, o que não significa dizer que a arte, para continuar sendo arte, necessite evitar o reconhecimento social. Embora, muitas vezes por refletir seu tempo de forma antecipatória, só atinge reconhecimento em uma época posterior.
A arte ao se entregar ao princípio do bem, feita por encomenda para ilustrar paredes ou no reforço de ideologias, ou seja, para ser o que falta a quem se dispõe a tê-la, é aquela que é apresentada como estando “curada” da ferida que a constitui no enlace com o real. Ela foi “suturada” onde deveria estar aberta.

2º Além do Bem: o Belo
Para Lacan o belo é o último véu que nos protege do real. É um ponto de transposição, como ele próprio denomina. Esta articulação o leva a pensar as relações do belo com o desejo, onde a arte é vista para além do princípio do bem. O belo é a segunda barreira ao desejo, pois a primeira é o bem, que perverte totalmente o desejo ao se propor como resposta. Na dimensão do belo, mesmo sendo uma última rede de proteção ao real, há, porém, uma exposição a ele. Nesta dimensão, a arte bela está em uma fronteira, uma vez que ela ofusca o desejo com seu brilho e, ao mesmo tempo, estando no último passo frente ao abismo, indica que há algo além. Há na relação do belo com o desejo uma ambigüidade, por um lado parece que há uma extinção do desejo, pelo fascínio que o belo causa “pela zona de brilho e esplendor que o desejo se deixa arrastar”[13] , e por outro ele não é totalmente extinto pela apreensão da beleza, pois aqui não há o objeto, há uma enternecimento– a arte sustenta o desejo. A arte bela produz um efeito de regozijo a quem a olha. Porém, este é um efeito singular no sujeito e, mais do que isso, ele é indizível, intraduzível, intransmissível em totalidade, e por isso mesmo comporta o furo real.
O amor cortês é resgatado por Lacan como paradigma da sublimação e, mais particularmente, para formular sua concepção da arte em relação à Coisa. A poesia cortesã evidencia tanto a beleza como a crueldade do amor. É a principal expressão literária dos séculos XII e XIII, criação dos trovadores da Provença, região do sul da França, tendo dali se difundido para o resto da Europa.
Não é um acontecimento apenas localizado na estética, mas é por meio da arte que se tem notícia dele. Nasceu nas cortes feudais e desenvolveu-se como sensibilidade mundana, voltado para a valorização sensual do amor e da mulher. Há no amor cortês uma relação do objeto com o desejo que serve de modelo para Lacan. O amor cortês proporcionou a promoção do objeto feminino à função da Coisa. Sua poesia trata da relação entre uma dama casada e um homem celibatário que se interessa por ela. No amor cortês havia a escolha que o processo dos esponsais proibia, no entanto, o amante escolhia a mulher de outro. Não a tomava nem a força nem por acordos formais, conquistava-a perigosamente, vencendo pouco a pouco as suas resistências.
Lacan sublinha que o objeto feminino no amor cortês é introduzido pela privação, pela inacessibilidade. O jogo do amor só ocorre se existir uma barreira entre os amantes. É uma característica da cena que é imprescindível ao romance. Não são as qualidades que personalizam a dama. As trovas parecem ter sido, todas, escritas para a mesma pessoa. O pressuposto que marca a mulher é o de estar barrada àquele amor. [14] Não é que o amor cortês prescinda da satisfação, a questão, mais precisamente, é que ele se organiza na não satisfação. A instituição da falta na relação com o objeto é que constitui o amor ideal[15]. Isto é, a dama está no lugar de das Ding e é sua falta que move o sujeito. Mais do que isso, a dama (objeto imaginário) está encobrindo a falta (das Ding) com sua ausência (objeto a). Indo mais além, essa falta encoberta pela ausência é, enfim, revelada, via sublimação, pelo artista em sua poesia.

3º Mais além do Belo: o Sublime
Para além do belo está o sublime como dá a entender Ponce[16]. A antítese clássica entre o Belo e o Sublime pertence à filosofia. Porém o Sublime é um termo literário associado ao êxtase e à criação poética. Foi originalmente talhado por Longino[17] como efeito produzido pelo estilo de um orador ao comover sua platéia. Lacan, abalizado pela estética Kantiana, introduz como contraponto da experiência do belo, a do sublime e, por essa via, entende o mais além do princípio do prazer que se pode dar como efeito do contato com a arte.
No sublime não há uma contemplação agradável e sim a experiência de uma dilaceração. Não é possível estabelecer um acordo feliz entre a subjetividade e a imaginação, o que é indispensável para haver harmonia na impressão sensível. Há um conflito entre nós mesmos e o sensível. Para Ponce[18], enquanto o belo está vinculado à representação da qualidade, no sublime a vinculação é com a quantidade. Somos invadidos pelo espetáculo do sublime e nos reconhecemos impotentes frente a ele. A arte bela encanta, a arte sublime comove. Enquanto o sentimento do belo está referido a forma do objeto, o sublime pode ser encontrado em um objeto sem forma.
Ponce[19] descreve o advento da arte moderna como sendo o de instalar uma tensão entre a experiência de satisfação através do belo que encanta e a comoção proporcionada pela experiência do sublime. Vários autores já sublinharam que a arte do século XX e a psicanálise, por terem nascido na mesma época, compartilham um mesmo “espírito”[20]. Sublinham a semelhança entre a descoberta do inconsciente por Freud, que divide o sujeito definitivamente e a quebra na organização espacial tradicional, vigente desde o Renascimento, exemplarmente presente na pintura de Paul Cézanne. Porém, Ponce vai além ao propor que, com o divórcio entre a imagem e o sentido que ocorre na arte moderna, há uma quebra entre a obra de arte e o artista e o espectador. A arte parece ter ficado livre das amarras das convenções e exigências estéticas. Porém, do outro lado está o espectador, que jogado frente à obra de arte deriva em sua solidão. Ele é olhado pelo objeto artístico sem que possa lançar mão de um sentido protetor.

4º Elo: A arte sinthomática
A quarta maneira em que a arte é incluída na teoria lacaniana, não pode a rigor ser considerada com o mesmo enquadramento das outras três concepções.
A arte como um bem, arte bela e a arte sublime são conjecturas conceituais. O objeto de estudo é a arte que se mostra compreendida pela teoria. A arte como quarto elo contém uma mudança radical de enfoque. De maneira totalmente diversa, a arte comparece como um elemento importante na construção da própria teoria lacaniana acerca da estrutura subjetiva.
A constituição humana para Freud está ancorada nos ternários consciente/inconsciente/préconsciente e eu/isso/supereu; para Lacan, a subjetividade se constitui entre o simbólico, o imaginário e o real e está dividida entre saber e verdade[21].
É no intuito de evidenciar teoricamente a paradoxal constituição da subjetividade humana que Lacan se aventura pela topologia. E é com a ajuda desta lógica que ele procura demonstrar o indizível.
A topologia borromeana dos nós foi elaborada por Lacan a partir do emblema de uma família de nome Borromeu[22]. É uma figura onde há um entrelaçamento de três elos. O enodamento é tal que se um deles for cortado o laço todo se desfaz. O desenho foi providencial para Lacan demonstrar as relações entre o simbólico, o imaginário e o real. Foi possível expor a existência de uma equivalência de importância entre os registros e ao mesmo tempo demonstrar que cada um deles possui propriedades distintas. Os três elos do nó Borromeano têm diferentes predicados; no imaginário está situado o suporte da consistência, a aquisição da imagem corporal pelo sujeito; o simbólico tem o furo como sendo o que lhe é essencial, o que faz com que se produza diferença; e o real sua ex-sistência que é relativa ao impossível, a não existência da relação sexual, ao fato de que a articulação dos três registros não proporciona ao sujeito um Outro do Outro.
No Seminário RSI Lacan demonstra a importância de que um quarto laço venha realizar a função de manter o enlace entre os registros como também delimitar a necessária distinção entre eles. Esta hipótese é fundamentada nos conceitos freudianos do complexo do Édipo e de realidade psíquica e recebe de Lacan o título de Nome-do-Pai. Ocorre, porém que a constituição subjetiva não é estável, algo sempre falha e o que sempre falha, pelo menos em parte, é o Nome-do-Pai em sua simbolização do real pulsional. Os sintomas surgem como remendos na função paterna. O sintoma está no próprio lugar onde o nó rateia, onde está o lapso do nó[23]. No caso das psicoses a teoria borromeana sofre um complicador a mais, pois esse adoecimento psíquico se caracteriza pela não inscrição no campo do Outro do significante do Nome-do-Pai. Para o psicótico não é possível a construção de uma fantasia, uma frase simbólica que venha, através do gozo fálico, demarcar o gozo enigmático do Outro. Isto é, encontrar como sujeito sua resposta à demanda da mãe [24]. O que nos leva a considerar que na psicose, pela falta do Nome-do-Pai o nó se desfaz, há a eclosão do delírio e a invasão no imaginário.
Porém, a arte de James Joyce escritor irlandês que revolucionou a literatura, vem “embaraçar”[25] Lacan que o considerava psicótico.
Saussure nos ensinou que os signos antes de remeterem a qualquer coisa do mundo, remetem, quando se quer saber seu valor, a outros signos. Consideração da qual é retirada a descoberta de que a linguagem nasceu a partir da criação do recurso metafórico e, por isso mesmo, comporta como característica um mal entendido fundamental. É intrínseco à palavra ser portadora de um equívoco. Em contrapartida, há em algum ponto do discurso algo que não engana. Não é possível fazer funcionar a atividade discursiva sem o estabelecimento de um acordo mínimo, mesmo que arbitrário, de atribuição de sentido. Lacan analisa a escrita de Joyce, a descreve como tendo uma forma diferenciada de relação com a instância da letra. Destaca as Epifanias utilizadas por Joyce em seus livros como sendo testemunhas de um esvaziamento radical da capacidade de articular a experiência. Lacan explica que neste tipo de escrita onde trechos de conversas são retirados de seu contexto natural pelo autor e transferidos para dentro de seu texto, o Simbólico e o Real estão entrelaçados, mas o imaginário fica solto, fora, tornando incompreensível a mensagem, já que o sentido reside na interseção do Simbólico com o Imaginário.
A escrita de Joyce, de forma geral é não tributária do sentido, pois o que mais importava ao autor de Ulisses era a musicalidade das letras e das palavras. Os enigmas contidos em sua escrita não são de fácil desvendamento por carecerem de metáforas orientadoras. Ele manipulava a língua inglesa e neste jogo de letras, palavras e sons, acabava por produzir uma nova língua. A partir do que novos sentidos puderam ser construídos, mesmo não sendo estes muito compartilháveis. Joyce trabalhava diretamente no real da letra e deste trabalho extraia seu gozo.
No caso de Joyce, o quarto elo que produziu uma articulação capaz de sustentar sua estrutura psíquica não poderia ser o Nome-do-Pai. Lacan considera que foi a obra de Joyce que assegurou sua estabilidade psíquica, a responsável pelo não desencadeamento de um surto psicótico.
A estrutura de Joyce não pôde se valer do sintoma neurótico, como costura nas falhas presentes no Nome-do-Pai. No lugar do quarto laço Joyce teve que inventar o que Lacan chamou de Sinthoma. Para além de simples retificações ou emendas, o Sinthoma é ele próprio o laço. Lacan propõem que a escrita de Joyce, seu sinthoma, era sua forma privilegiada de gozo, um gozo que estava além da demanda do Outro.
No entanto Lacan acredita que o motivo pelo qual Joyce pode se salvaguardar de um surto não foi só sua possibilidade de utilizar a arte como barra à invasão no Simbólico pelo gozo do Outro, transformando este gozo em uma versão sua. Lacan acredita que foi fundamental para o equilíbrio psíquico de Joyce a construção de um nome próprio que adveio do reconhecimento público de seu valor artístico. E esta necessidade era claramente explicitada por Joyce quando ele dizia que faria os críticos, letrados, universitários e demais leitores ficarem ocupados com seus escritos por 300 anos. Lacan acredita que a valorização de seu nome próprio pelo mundo era como uma compensação onde houve uma demissão paterna. O Sinthoma de Joyce foi o de as expensas de seu pai, escrever seu nome no mundo através de sua arte, assegurando-lhe um lugar enquanto sujeito.
A direção do tratamento das psicoses adquire, com estas formulações, uma nova perspectiva. Até então a única possibilidade para a psicose era a constituição de um delírio. A escrita sinthomática de Joyce adiciona a possibilidade de construção de uma suplência ao Nome-do-Pai que não passa pelo delírio. Qual seja: a invenção pelo sujeito de seu sinthoma, sua forma singular de gozo. E, através desta construção, em uma escala que lhe seja possível, a inscrição de seu nome próprio no social. Essa operação possibilita que, por um lado se mantenha a falta, que é condição para o exercício da subjetividade e, por outro, garante uma atribuição de potência ao sujeito permitindo que ele não se defenestre nesta falta.
Com o quarto Elo deste arranjo sobre a arte na teoria lacaniana, o incômodo de Lacan, exposto no seminário 7, de reclamar um lugar maior para a arte do que a de ser uma professora do colegiado psicanalítico é aclarado. Somos mesmo ‘catadores de migalhas...’, é o que pensamos quando vemos surgir um Lacan que propõe que a arte possa ocupar o lugar de 4º Elo. O lugar do Nome-do-Pai. Fazer suplência desta falta. A arte, neste momento da teoria lacaniana assume a função de amarrar o simbólico , o imaginário e o real, proporcionando certo arranjo, mesmo que bastante singular, da subjetividade. Isto não é pouco, é talvez o que nós analistas tanto almejamos quando tratamos de sujeitos psicóticos em profundo sofrimento mental.

Bibliografia:
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_________. “Delírio e sonhos na Gradiva de Jansen” (1906 - 07) vol. IX, ibid
_________. “Escritores Criativos e devaneios” (1907 – 08) vol. IX, ibid
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_________. ‘Um estudo auto biográfico” (1924 – 25) vol. XX, ibid
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RINALDI, D. – A Ética da Diferença Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1996.
___________. “Joyce e Lacan: algumas notas sobre escrita e psicanálise”, trabalho apresentado no simpósio Joyce-Lacan; Dublin, Junho de 2005. Irlanda. A ser publicado na Pulsiconel Revista de Psicanálise em dezembro de 2006.

[1] Lacan, J. – O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p. 289.
[2] Freud, S. – “Projeto para uma psicologia científica” (1895).
[3] Lacan, J. – O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p.149.
[4] Lacan, J. – O Seminário R.S.I.. (1974-75).
[5] Freud, S. – “Totem e Tabu” (1913 [1912 – 1913])
[6] Lacan, J. “Ciência e Verdade” (1965), in Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998. p. 871.
[7] Lacan, J. – O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p.162.
[8] idem, ibidem p. 151.
[9] Lacan, J. – O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p.176.
[10] idem, ibidem p.175.
[11] Referência a tese de doutorado de Giselle Falbo. “Para que serve? Quanto vale? Reflexões da psicanálise sobre a crise da arte.” UFRJ.
[12] Lacan, J. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p. 266.
[13] idem, ibidem. p. 302.
[14] idem, ibidem p.186.
[15] Lacan, Jacques. O Seminario, livro 4: La Relación de Objeto- La primacía del falo y la joven homosexual. (9 de Enero de 1957) em CD Rom.
[16] Ponce, X. G. – “Conferencia Sobre las Paradojas (contemporáneas) de la Satisfacción” . in: Ornicar? digital: liste des articles publieis, Online.
[17] Barbas, H. – O Sublime e o Belo, de Longino a Edmund Burke. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Departamento de Estudos Alemães http://www.fcsh.unl.pt/docentes/hbarbas/SublimeHBarbas.htm
[18] Ponce, Xavier Giner – “Sobre parejas modernas: el espectador y la obra del arte” in: sit internet: Ornicar? digital: liste des articles publieis. Online.
[19] Ponce, Xavier Giner – “Conferencia Sobre las Paradojas (contemporáneas) de la Satisfacción.”
[20] Entre outros: Rivera, T. op. cit. e Kon, N. M. – Freud e seu duplo: Reflexões entre Psicanálise e Arte.
[21] Porge, E. – Os nomes do pai em Jacques Lacan: pontações e problemáticas. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.
[22] Freire, M. M. – A escritura psicótica, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2001.
[23] Lacan, J. – O Seminário 23 – O Sinthoma CD Rom
[24] Freire, M. M., op. cit.
[25] Em espanhol engravidar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Belo artigo.
Mas para entendê-lo melhor tenho que retomar Freud e Lacan mais um pouco