sábado, julho 08, 2006

Do brincar a arte no Capsi Eliza Santa Roza

Apresento o testemunho do trabalho desenvolvido no CAPSI Eliza Santa Roza no qual a arte é incluída, articulando esta clínica com os postulados teóricos-práticos da psicanálise.
O brincar e o atendimento com os pais são modos de trabalho que especifica a clínica com crianças. Houve no Brasil, durante algum tempo, um descompasso em relação à compreensão do brincar. Enquanto alguns tenderam a substituir o discurso da criança pelo uso do brinquedo, outros, em oposição radical a essa prática, retiraram a possibilidade do brincar. Segundo Roza (1999), a experiência psicanalítica com a criança deve acontecer numa articulação do brincar com a verbalização. Incluir o brincar sem circunscrevê-lo como substituto da fala ou da associação livre, é fazê-lo capaz de engendrar sentidos, produzir associações e assim proporcionar uma articulação com o significante lingüístico.
Em suas reflexões sobre a atividade infantil Freud apresenta um claro vínculo entre o brincar e a expressão artística. No texto “Escritores criativos e devaneios” (1908), diz: “A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real”. Através desta afirmação, em conjunto com o corpo teórico do texto, entendemos que a brincadeira, banhada na fantasia expressa a realidade psíquica da criança. O brincar, como o sonho, é determinado por desejos inconscientes, nele estão presentes mecanismos como a figuração, a condensação, o deslocamento e o simbolismo. Porém, o brincar não é uma formação do inconsciente, nele a incidência da elaboração secundária é predominante, estabelecendo coerência e ordenação. Nesse mesmo texto, calcado na afirmação dos próprios escritores – de que eles não são diferentes da maioria das outras pessoas – Freud constrói a hipótese de que o elo entre o artista e o homem comum está na atitude da criança ao brincar, onde aparecem os primeiros traços de imaginação criativa. A criança ao brincar se comporta como um artista que reedita a realidade da forma que melhor lhe agrada. Tanto um quanto outro leva muito a sério essa brincadeira, nela investindo muita emoção. Ao mesmo tempo, sabem que tudo não passa de um acordo momentâneo de insanidade.
Foi este o ponto que deu início a pesquisa teórica-clínica que apresento. E é no contexto de sustentação do discurso psicanalítico no campo da Saúde Mental – onde se procura estabelecer uma clínica com rigor teórico, afinada com a ética psicanalítica – que me lanço no novo desafio de articular na prática a psicanálise com a arte.
Existem, no Capsi Eliza Santa Roza, dois espaços em que alguns efeitos interessantes vêm ocorrendo quando a arte vem se somar à psicanálise no tratamento psíquico. Um com pacientes adolescentes autistas, psicóticos e neuróticos graves e outro com pacientes mais novos de até onze anos autistas e psicóticos.
O primeiro inicialmente era chamado de ‘oficina de arte’. Esta oficina foi criada em um momento de reorganização do serviço, quando estava deixando de ser um ambulatório para se tornar um Capsi. A denominação ‘oficina de arte’ leva a muitos equívocos. Oficina é um termo utilizado para descrever inúmeras práticas terapêuticas, inclusive algumas nem tão terapêuticas assim. Muitas vezes é uma atividade dirigida onde a preocupação com o produto final se sobrepõe ao trabalho psíquico envolvido na ação. Foi por estas razões que fomos parando de nomeá-la ‘oficina’ e incorporando-a ao dispositivo de convivência que ocorre no mesmo momento. O dispositivo Convivência se assemelha a ‘prática feita por muitos’ que acontece em algumas instituições psicanalíticas, inclusive no exterior como Antenne e o Countril na Bélgica. A oficina ‘explodiu’, sendo incorporada por esta outra atividade, mas também a contaminou, levando para esse espaço mais amplo de atendimento, outros recursos que antes não eram utilizados. Ela é hoje um acontecimento aberto e livre à participação de quem estiver em tratamento no mesmo horário.
O conceito de arte que utilizamos não está relacionado ao de produção de obras de arte valorizadas socialmente. Mesmo que alguns pacientes apresentem um talento artístico especial, não é nesta direção que caminhamos. Inclusive, pode não haver um objeto ao final. Não existe nenhuma obrigatoriedade relativa à atividade, o que não significa dizer que não haja oferecimentos, porém, estes oferecimentos podem ser recusados, acrescidos ou mesmo trocados por outro. Este trabalho tem como princípio que incompatibilidade com a psicanálise não está em se oferecer ou não um material, e sim a maneira como este oferecimento é feito e as razões que o orientam. O oferecimento precisa estar ancorado na clínica do sujeito em análise e não em uma demanda do analista. Neste sentido podemos lembrar da psicanálise com crianças, pois nela o brinquedo é parte integrante da clínica. Entretanto, não dá para negar que muitos profissionais transformam suas sessões em ludoterapia ou pior, como um meio de domar as “pulsões endiabradas” de seus pequenos pacientes. Porém, o caminho para preservar o rigor da clínica psicanalítica não é o de retirar o brincar, mas o de sustentar sua importância e pertinência no tratamento, reconhecendo, com Freud, que o brincar é determinado por desejos inconscientes e representante da realidade psíquica, e que é na articulação do brincar com a verbalização que a função do analista implica profundamente o sujeito.

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