sábado, julho 08, 2006

"O Brincar como uma especificidade da clínica com crianças”

Destacar o brincar como uma das condições específicas no trabalho com crianças é conferir importância ao método que deu origem à psicanálise com crianças.
A psicanálise de crianças deve sua existência à introdução do método lúdico, através do qual Melanie Klein ampliou o campo da psicanálise à criança.
Nos primórdios da psicanálise com crianças houve entre Anna Freud e Melanie Klein uma batalha teórica. Anna Freud considerava que as crianças, não tinham maturação psíquica para fazer psicanálise, acreditava, inclusive, que sua prática poderia ser maléfica, pois através de seu poder de remover o recalque, a psicanálise poderia fortalecer tendências impulsivas e negativas. No livro “O tratamento psicanalítico de crianças” (1926) Anna Freud defendeu a inaplicabilidade da psicanálise às crianças, utilizando o argumento que os pais ainda existem como objetos de amor na realidade e não na fantasia, e que essa ligação dificulta a transferência com o psicanalista. Para Anna Freud restava ao analista de crianças adotar uma postura pedagógica, orientadora, ganhando a confiança da criança para conduzi-la ao bom caminho da sublimação dos impulsos sexuais.
Na tentativa de viabilizar a psicanálise de crianças Melanie Klein estabeleceu que a diferença entre a psicanálise de crianças e a psicanálise de adultos está no método e não em seus princípios básicos. Klein propõe uma equivalência entre associação livre e o jogo lúdico, considerando-o como um campo transferencial fértil ao trabalho analítico.
A discordância entre as duas teóricas teve fim com o recuo de Anna Freud que abriu mão da orientação pedagógica ao admitir sinais de transferência na análise com crianças, reconhecendo que os princípios básicos da psicanálise poderiam ser estendidos à infância.
Em 1980, no auge do pensamento lacaniano no Brasil, a psicanálise com crianças foi posta a prova. Para Lacan a criança é um ser analisável, já que é um sujeito, com pelo menos uma promessa de estrutura. Porém, o jogo, o brincar, especificidades desta clínica, não é considerado substituto das associações livres. Houve então um descompasso na clínica com crianças, enquanto alguns tenderam a substituir o discurso da criança pelo uso do brinquedo, outros, em oposição radical a essa prática, direcionaram seu interesse apenas para expressões verbalizadas das crianças e negligenciaram o brincar.
Segundo Elza Santa Roza, a experiência psicanalítica com a criança acontece numa articulação do brincar com a verbalização. Ela conceitua o fenômeno lúdico situando-o no campo da linguagem. Considera que as crianças, mesmo não sendo seres mudos ou pré-verbais, apresentam tendência à ação e limites nas suas possibilidades de verbalização. Geralmente, não se dispõem a deitar no divã e a sair fazendo associações livres. Fazer essa exigência seria impossibilitar a psicanálise à criança, propõe então deixar a criança livre para se expressar da maneira como lhe convém, que ela fale de si da forma que puder.
Para Winnicot, o brincar é uma fonte de diálogo com as crianças: “Quando a criança não é capaz de brincar, é preciso trazê-la para um estado em que ela possa brincar”
Como afirma Roza:
“É através dele (o brincar) que se processa a organização do sujeito, que nasce e se desenvolve a linguagem, que se dá o aprendizado e o conhecimento do mundo. Via privilegiada de expressão e de apreensão da realidade, o brincar permite o acesso ao simbólico a aos processos de complexificação da vida” (p.20)

· Conceito
O brincar é uma forma universal de comportamento característico da infância, presente em todas as formas de organização social, das mais primitivas às mais sofisticadas. É uma atividade que transcende às necessidades biológicas, sendo um elemento da cultura cuja função é de representar a realidade. Está circunscrito num espaço e tempo, e apresenta regras. A brincadeira não está diretamente submetida ao brinquedo, porém, muitas vezes, um objeto pode sugerir o jogo ou mesmo ser completamente transformado para se adaptar aos interesses de uma brincadeira previamente estipulada. Um jogo pode ser adiado e até ser considerado supérfluo, porém, tem como característica fundamental a liberdade, deste modo, não poder ser imposto, é voluntário. Se virar uma obrigação, já não será mais uma brincadeira. Há, portanto, uma estreita ligação do brincar com o desejo.
Um dos motivos associados à tensão que o jogo pode provocar está ligado à incerteza, ao acaso que é inerente ao ato de se jogar. A imprevisibilidade pode fazer vínculo com a dimensão radical do ‘poder do destino’, e assim motivar reações passionais extremadas.
A característica mais instigante do ato da brincadeira é que ela é uma atividade não séria, uma evasão temporária da realidade e, ao mesmo tempo, um momento da mais absorvente seriedade. Momento em que há um distanciamento da realidade sem, no entanto, perdê-la de vista. O brincar é uma pré-disposição humana para a ilusão, ocorre no movimento pendular entre a magia, o irreal e a realidade, sendo uma conciliação entre o princípio da realidade e o principio do prazer.
· Brincando na psicanálise
O brincar é capaz de engendrar sentidos, produzir associações e assim proporcionar uma articulação com o significante lingüístico. É uma atividade que proporciona trocas entre os sistemas inconsciente/pré-conciente através da expansão da possibilidade de expressão da criança no plano simbólico, permitindo novas significações. Nesse sentido, o brincar é considerado constituinte da realidade psíquica, se aproxima dos devaneios e da criação artística mais do que do chiste e dos sonhos e não se restringe a expressão da sexualidade infantil. Nele estão presentes mecanismos como a figuração, a condensação, o deslocamento e o simbolismo. Todavia, o brincar, embora seja determinado por desejos inconscientes não é uma formação do inconsciente, nele a incidência da elaboração secundária é predominante, estabelecendo coerência e ordenação no seu conteúdo manifesto.
· O brincar e a interpretação
Para Winnicott a análise do brincar não é para ser restringida ao conteúdo do jogo. Brincar é, antes de tudo, um movimento, a ação de uma engrenagem que girará infinitamente no sentido de originar interpretações
Segundo Ferreira (1999) o jogo que não tem uma significação a ser desvelada pelo analista, mas sim faz irromper o significante. É o enlace entre o brincar e a palavra que interessa na clínica. Não se trata de excluir o brinquedo, mas tratá-lo como significante e não como símbolo. O jogo não tem significado, mas pode apresentar um sentido, e este só pode ser buscado na própria ‘expervivência’ da criança e articulado no encadeamento significante produzido no seu discurso. O brincar já é uma interpretação da criança em relação a sua realidade.
Mannoni (1995) acredita que dar às crianças a possibilidade de pintar, de inventar um mundo segundo suas idéias, permite que elas possam se expressar numa linguagem sem palavras o que as mortificou. O essencial é que possam encontrar meios de se exprimir. De fato, é importante que o analista não se apresse em dar um sentido de imediato, nem procure prematuramente reconstruir fatos, pois, a área de jogo, tem uma função decisiva por constituir o lugar onde o sujeito se interroga sobre o que ele é.
Segundo Roza, a intervenção do analista objetiva o andamento da cadeia significante. As observações do analista não se restringem ao plano da palavra, podem estar inseridas no nível do próprio jogo. Isto é não se limitar em interpretações da brincadeira, mas, sobretudo, interpretar na brincadeira. Brincar com a criança, sabendo que o que se está fazendo é coisa muito séria.
Após usar vários autores em muitos parágrafos para falar sobre o brincar, lanço mão do poeta que com poucas palavras traduz mais claramente esta expressão.

“O POETA é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente”
Fernando Pessoa

Do brincar a arte no Capsi Eliza Santa Roza

Apresento o testemunho do trabalho desenvolvido no CAPSI Eliza Santa Roza no qual a arte é incluída, articulando esta clínica com os postulados teóricos-práticos da psicanálise.
O brincar e o atendimento com os pais são modos de trabalho que especifica a clínica com crianças. Houve no Brasil, durante algum tempo, um descompasso em relação à compreensão do brincar. Enquanto alguns tenderam a substituir o discurso da criança pelo uso do brinquedo, outros, em oposição radical a essa prática, retiraram a possibilidade do brincar. Segundo Roza (1999), a experiência psicanalítica com a criança deve acontecer numa articulação do brincar com a verbalização. Incluir o brincar sem circunscrevê-lo como substituto da fala ou da associação livre, é fazê-lo capaz de engendrar sentidos, produzir associações e assim proporcionar uma articulação com o significante lingüístico.
Em suas reflexões sobre a atividade infantil Freud apresenta um claro vínculo entre o brincar e a expressão artística. No texto “Escritores criativos e devaneios” (1908), diz: “A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real”. Através desta afirmação, em conjunto com o corpo teórico do texto, entendemos que a brincadeira, banhada na fantasia expressa a realidade psíquica da criança. O brincar, como o sonho, é determinado por desejos inconscientes, nele estão presentes mecanismos como a figuração, a condensação, o deslocamento e o simbolismo. Porém, o brincar não é uma formação do inconsciente, nele a incidência da elaboração secundária é predominante, estabelecendo coerência e ordenação. Nesse mesmo texto, calcado na afirmação dos próprios escritores – de que eles não são diferentes da maioria das outras pessoas – Freud constrói a hipótese de que o elo entre o artista e o homem comum está na atitude da criança ao brincar, onde aparecem os primeiros traços de imaginação criativa. A criança ao brincar se comporta como um artista que reedita a realidade da forma que melhor lhe agrada. Tanto um quanto outro leva muito a sério essa brincadeira, nela investindo muita emoção. Ao mesmo tempo, sabem que tudo não passa de um acordo momentâneo de insanidade.
Foi este o ponto que deu início a pesquisa teórica-clínica que apresento. E é no contexto de sustentação do discurso psicanalítico no campo da Saúde Mental – onde se procura estabelecer uma clínica com rigor teórico, afinada com a ética psicanalítica – que me lanço no novo desafio de articular na prática a psicanálise com a arte.
Existem, no Capsi Eliza Santa Roza, dois espaços em que alguns efeitos interessantes vêm ocorrendo quando a arte vem se somar à psicanálise no tratamento psíquico. Um com pacientes adolescentes autistas, psicóticos e neuróticos graves e outro com pacientes mais novos de até onze anos autistas e psicóticos.
O primeiro inicialmente era chamado de ‘oficina de arte’. Esta oficina foi criada em um momento de reorganização do serviço, quando estava deixando de ser um ambulatório para se tornar um Capsi. A denominação ‘oficina de arte’ leva a muitos equívocos. Oficina é um termo utilizado para descrever inúmeras práticas terapêuticas, inclusive algumas nem tão terapêuticas assim. Muitas vezes é uma atividade dirigida onde a preocupação com o produto final se sobrepõe ao trabalho psíquico envolvido na ação. Foi por estas razões que fomos parando de nomeá-la ‘oficina’ e incorporando-a ao dispositivo de convivência que ocorre no mesmo momento. O dispositivo Convivência se assemelha a ‘prática feita por muitos’ que acontece em algumas instituições psicanalíticas, inclusive no exterior como Antenne e o Countril na Bélgica. A oficina ‘explodiu’, sendo incorporada por esta outra atividade, mas também a contaminou, levando para esse espaço mais amplo de atendimento, outros recursos que antes não eram utilizados. Ela é hoje um acontecimento aberto e livre à participação de quem estiver em tratamento no mesmo horário.
O conceito de arte que utilizamos não está relacionado ao de produção de obras de arte valorizadas socialmente. Mesmo que alguns pacientes apresentem um talento artístico especial, não é nesta direção que caminhamos. Inclusive, pode não haver um objeto ao final. Não existe nenhuma obrigatoriedade relativa à atividade, o que não significa dizer que não haja oferecimentos, porém, estes oferecimentos podem ser recusados, acrescidos ou mesmo trocados por outro. Este trabalho tem como princípio que incompatibilidade com a psicanálise não está em se oferecer ou não um material, e sim a maneira como este oferecimento é feito e as razões que o orientam. O oferecimento precisa estar ancorado na clínica do sujeito em análise e não em uma demanda do analista. Neste sentido podemos lembrar da psicanálise com crianças, pois nela o brinquedo é parte integrante da clínica. Entretanto, não dá para negar que muitos profissionais transformam suas sessões em ludoterapia ou pior, como um meio de domar as “pulsões endiabradas” de seus pequenos pacientes. Porém, o caminho para preservar o rigor da clínica psicanalítica não é o de retirar o brincar, mas o de sustentar sua importância e pertinência no tratamento, reconhecendo, com Freud, que o brincar é determinado por desejos inconscientes e representante da realidade psíquica, e que é na articulação do brincar com a verbalização que a função do analista implica profundamente o sujeito.

LACAN E A ARTE

Lacan não se contenta em apenas sustentar o lugar de aprendiz, ‘colegial’, em relação à arte, como supunha Freud. Afirma sermos, nós analistas, frente à arte, “catadores de migalhas”.[1] Lança mão do conceito de Coisa ou das Ding para articular a fórmula que irá, ao final, ordenar a função da sublimação. O termo já está em Freud[2] e Lacan o retoma como um conceito que designa o que aparece como estranho e alheio no ponto inicial do psiquismo.
Caminhando na direção da Coisa o sujeito reencontra outros objetos, já que, em última instância não existe O Objeto que suture sua falta originária. Lacan nos diz que Das ding escapa a significação, é indizível, “...essa Coisa, (é) o que do real (...) padece do significante”[3], o vazio no centro do real. A Coisa é a falta comum em todos. A Coisa é fundadora desejo. É na falta que a Coisa é reencontrada e remetida sempre a outra coisa.
Neste momento é necessário a introdução do conceito de objeto a, objeto causa de desejo, que diferentemente de das Ding, a Coisa, tem uma vertente real, outra simbólica e uma imaginária[4]. Razão pela qual Lacan o situa, no nó borromeano, naquela região de interseção dos três registros. Enquanto das Ding é o objeto da pulsão de morte, a face real do objeto a. Porém nós só temos acesso ao objeto a em sua vertente simbólica ou imaginária.
A Coisa será sempre representada por um vazio, nos diz Lacan ao teorizar sobre a sublimação. O autor retoma a proposta de Freud de que uma neurose obsessiva seria a caricatura da religião, um delírio paranóico um sistema filosófico distorcido (posteriormente o aproxima da ciência) e uma histeria uma obra de arte deformada[5] – e propõe que, em toda forma de sublimação, o vazio, como índice da Coisa, será determinante, permanecendo no centro; sublimar é elevar o objeto à dignidade da Coisa.
Lacan indica que há três modos diferentes de sublimação, três modos diferentes de se relacionar com o vazio: o da religião, da ciência e da arte.
No caso da ciência é necessário não se incorrer na precipitação de simplesmente dizer que o que há é a Verwerfung (foraclusão) do vazio. Mesmo sabendo que isso não é uma inverdade, é necessário maior rigor teórico. Em “Ciência e verdade” Lacan faz uma proposta radical ao situar o mesmo sujeito que foi para a ciência, em sua concepção moderna, como sendo o da psicanálise. Ele afirma que “o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência”[6]. O autor retoma os acontecimentos do século XVII em que Descartes através do cogito proclama um ‘rechaço de todo saber’, mesmo momento histórico que Galileu funda a ciência moderna instituindo uma fenda entre saber e verdade. O sujeito do inconsciente nasce ali naquele momento cindido. Não haverá mais, de agora em diante, a Verdade, agora ela vale como algo a ser refutado, a certeza estava para sempre banida, é não-toda. Enfim, foi a ciência que pela primeira vez tratou o real pelo simbólico. Entretanto, para se afirmar como um saber, a ciência precisou concretizar conceitos matematizados, lógicos sobre o real e deixou de lado sua descoberta, trazendo para seu centro outros referentes. Assim, o furo real que fora denunciado pela ciência ficou externo a ela, como algo sabido, porém paralelo.
No caso da religião, baseado no comportamento obsessivo, Lacan diz, inicialmente, que, há algo da ordem da evitação do vazio. Porém, não se satisfaz com essa explicação e prefere dizer que o que ocorre é um “respeito” a esse vazio. Esse respeito é traduzido como uma operação de deslocamento (Verschiebung)
Já a arte, para Lacan caracteriza-se por um certo modo de organização em torno do vazio[7]. Vazio que no centro do vaso, a partir da função artística mais antiga – a do ceramista – é exemplo do mistério da criação[8]. A arte tem como combustível esse vazio. O mesmo que a ciência ejetou e a psicanálise colocou em seu centro, a arte tem no início, no antes dela, como também em seu final, pois que ela não faz nada além do que expô-lo.
Antes do que é escrito pelo autor, o que se tem é um papel vazio. Do pintor uma tela em branco, do escultor um nada. Há um nada antes da criação artística. Um nada que incomoda, que pulsa, que insiste. Porém, ao terminar, a obra artística também não oferece consistência. Quando ela acaba, vira um resto, algo que não deu conta de dizer a que veio. A percepção de que a obra não diz tudo, que sempre falta algo, parece ser o motivo que leva o artista a nunca parar de criar, sempre outras obras igualmente insatisfatórias.
Qualquer objeto, e não algum idealizado, serve para ser elevado a dignidade da Coisa. Estranhamente, no mesmo momento em que o objeto é elevado à dignidade da Coisa é também destituído de sê-la. O objeto artístico “é instaurado numa certa relação com a Coisa que é feita simultaneamente para cingir, para presentificar e para ausentificar”[9]. A arte presentifica a ausência, expõe a falta, é o resto exposto que faz restar.
Lacan não tem problemas em concordar que as obras de arte imitam os objetos que elas apresentam, porém, explica que elas imitam sem representá-los, elas fazem outra coisa do objeto[10]. Para melhor explicar essa afirmação lembra Cézanne e suas maçãs. Quando ele as pinta, faz bem mais do que imitar maçãs, não deixa de presentificá-las, mas ao mesmo tempo ausentifica-as como maçãs, as tornando outra coisa. O artista ao criar, renova a relação da arte com o real, faz surgir o objeto em uma renovada dignidade.
Para expor a arte em Lacan escolhi dividi-la em três aspectos, a saber: 1º Arte como um Bem; 2º Além do Bem: o Belo; 3º Mais além do Belo: o Sublime e 4º Elo: A Arte Sinthomática. Esta separação só tem sentido didático. Apesar de possuírem fundamentos diversos elas não são nem excludentes e nem tão pouco possui cada uma delas a pretensão de reter o entendimento global da arte. Proponho que sejam lidas da mesma forma como se olha um caleidoscópio que transmuta o objeto visto pelo giro que é efetuado.
1º Arte como um Bem
Na primeira dimensão, a do bem, a arte é valorizada como um produto, um objeto a ser comprado, de valor comercial que obedece às leis de mercado tanto quanto qualquer outro objeto, estando inserido nas relações de poder dominantes na sociedade. Neste sentido a arte serve ao tamponamento do desejo, ao engano da satisfação. A arte como um bem de consumo, usada para ser exercício de poder e prestígio é, no mínimo, contraditória. Depondo contra si própria, a arte descaracteriza-se em sua essência, já que, em essência ela comporta o vazio. A expressão flagrante desta dimensão é a do carro último tipo que pintado em uma fábrica recebe a assinatura de Picasso. Eleva-se o objeto a dignidade da Coisa ou está se rebaixando a Coisa ao nível do objeto? Tudo é acessível para quem tem como comprar. Tudo está à venda e a felicidade é possível, embora custe caro. Princípios da sociedade que perverte a arte moldando-a ao discurso capitalista.
Se a moral está corrompida, menos ainda estamos submetidos a preceitos éticos na perspectiva da psicanálise. A ética, estando para além da moral não obedece a imposições sociais superegóicas. Aponta para o universal da diversidade, enquanto que o consumismo globalizado está disfarçado na ideologia do direito de ser diferente. A sociedade capitalista parece ter se apropriado das formas de rebeldia possíveis, no comportamento e na arte. Na contemporaneidade a arte parece tanto virar moda, quanto à moda muitas vezes se intitula arte. Ao contrário de outros tempos onde se exilavam os rebeldes anti-sociais, hoje se ‘fagocita’ a expressão revolucionária incorporando-a rapidamente.
Não é de hoje que a discussão sobre a crise na arte anima calorosos debates. Sem entrar no julgamento a respeito do valor artístico de suas atuais expressões, o que podemos perceber é que, sob esse conflito, vemos nascer uma arte que nos presenteia com o ininteligível, como se quisesse nos reimputar o espaço vazio que parece estar sendo foracluído pela ideologia de mercado. O que demonstra que a arte não pode manter uma relação harmoniosa com a sociedade capitalista.
A arte contemporânea cria objetos que estremecem os conceitos antes aceitos sobre o que é arte; engendra, mais do que criação, a dúvida, a discórdia, a impossibilidade de uma categorização consensual da arte; busca, com sua insubordinação, esburacar as certezas do mestre capitalista[11] na tentativa de recolocar a Coisa em posição central de falta e de se ver livre do enquadramento de ser um bem.
A denúncia da arte é que à falta comum a todos não se responde com um bem comum, posto que não há. Mesmo que não houvesse a exclusão social, a felicidade não poderia ser alcançada no próximo shopping, ou mesmo em nenhum lugar. O capitalismo, ou mesmo qualquer ideologia política propõe o bem para todos. E por isso mesmo se apresenta para o sujeito como uma barreira a seu desejo.[12] A arte não tem como efeito o bem do sujeito, aquele bem para próximo que também a psicanálise questiona – o bem concebido como o bem natural, na busca de uma harmonia a ser reencontrada no caminho da elucidação do desejo. Querer o bem do próximo como se ele fosse você mesmo é um contra senso, já que o anula como outro.
A relação da arte com o capital é tensa, o que não significa dizer que a arte, para continuar sendo arte, necessite evitar o reconhecimento social. Embora, muitas vezes por refletir seu tempo de forma antecipatória, só atinge reconhecimento em uma época posterior.
A arte ao se entregar ao princípio do bem, feita por encomenda para ilustrar paredes ou no reforço de ideologias, ou seja, para ser o que falta a quem se dispõe a tê-la, é aquela que é apresentada como estando “curada” da ferida que a constitui no enlace com o real. Ela foi “suturada” onde deveria estar aberta.

2º Além do Bem: o Belo
Para Lacan o belo é o último véu que nos protege do real. É um ponto de transposição, como ele próprio denomina. Esta articulação o leva a pensar as relações do belo com o desejo, onde a arte é vista para além do princípio do bem. O belo é a segunda barreira ao desejo, pois a primeira é o bem, que perverte totalmente o desejo ao se propor como resposta. Na dimensão do belo, mesmo sendo uma última rede de proteção ao real, há, porém, uma exposição a ele. Nesta dimensão, a arte bela está em uma fronteira, uma vez que ela ofusca o desejo com seu brilho e, ao mesmo tempo, estando no último passo frente ao abismo, indica que há algo além. Há na relação do belo com o desejo uma ambigüidade, por um lado parece que há uma extinção do desejo, pelo fascínio que o belo causa “pela zona de brilho e esplendor que o desejo se deixa arrastar”[13] , e por outro ele não é totalmente extinto pela apreensão da beleza, pois aqui não há o objeto, há uma enternecimento– a arte sustenta o desejo. A arte bela produz um efeito de regozijo a quem a olha. Porém, este é um efeito singular no sujeito e, mais do que isso, ele é indizível, intraduzível, intransmissível em totalidade, e por isso mesmo comporta o furo real.
O amor cortês é resgatado por Lacan como paradigma da sublimação e, mais particularmente, para formular sua concepção da arte em relação à Coisa. A poesia cortesã evidencia tanto a beleza como a crueldade do amor. É a principal expressão literária dos séculos XII e XIII, criação dos trovadores da Provença, região do sul da França, tendo dali se difundido para o resto da Europa.
Não é um acontecimento apenas localizado na estética, mas é por meio da arte que se tem notícia dele. Nasceu nas cortes feudais e desenvolveu-se como sensibilidade mundana, voltado para a valorização sensual do amor e da mulher. Há no amor cortês uma relação do objeto com o desejo que serve de modelo para Lacan. O amor cortês proporcionou a promoção do objeto feminino à função da Coisa. Sua poesia trata da relação entre uma dama casada e um homem celibatário que se interessa por ela. No amor cortês havia a escolha que o processo dos esponsais proibia, no entanto, o amante escolhia a mulher de outro. Não a tomava nem a força nem por acordos formais, conquistava-a perigosamente, vencendo pouco a pouco as suas resistências.
Lacan sublinha que o objeto feminino no amor cortês é introduzido pela privação, pela inacessibilidade. O jogo do amor só ocorre se existir uma barreira entre os amantes. É uma característica da cena que é imprescindível ao romance. Não são as qualidades que personalizam a dama. As trovas parecem ter sido, todas, escritas para a mesma pessoa. O pressuposto que marca a mulher é o de estar barrada àquele amor. [14] Não é que o amor cortês prescinda da satisfação, a questão, mais precisamente, é que ele se organiza na não satisfação. A instituição da falta na relação com o objeto é que constitui o amor ideal[15]. Isto é, a dama está no lugar de das Ding e é sua falta que move o sujeito. Mais do que isso, a dama (objeto imaginário) está encobrindo a falta (das Ding) com sua ausência (objeto a). Indo mais além, essa falta encoberta pela ausência é, enfim, revelada, via sublimação, pelo artista em sua poesia.

3º Mais além do Belo: o Sublime
Para além do belo está o sublime como dá a entender Ponce[16]. A antítese clássica entre o Belo e o Sublime pertence à filosofia. Porém o Sublime é um termo literário associado ao êxtase e à criação poética. Foi originalmente talhado por Longino[17] como efeito produzido pelo estilo de um orador ao comover sua platéia. Lacan, abalizado pela estética Kantiana, introduz como contraponto da experiência do belo, a do sublime e, por essa via, entende o mais além do princípio do prazer que se pode dar como efeito do contato com a arte.
No sublime não há uma contemplação agradável e sim a experiência de uma dilaceração. Não é possível estabelecer um acordo feliz entre a subjetividade e a imaginação, o que é indispensável para haver harmonia na impressão sensível. Há um conflito entre nós mesmos e o sensível. Para Ponce[18], enquanto o belo está vinculado à representação da qualidade, no sublime a vinculação é com a quantidade. Somos invadidos pelo espetáculo do sublime e nos reconhecemos impotentes frente a ele. A arte bela encanta, a arte sublime comove. Enquanto o sentimento do belo está referido a forma do objeto, o sublime pode ser encontrado em um objeto sem forma.
Ponce[19] descreve o advento da arte moderna como sendo o de instalar uma tensão entre a experiência de satisfação através do belo que encanta e a comoção proporcionada pela experiência do sublime. Vários autores já sublinharam que a arte do século XX e a psicanálise, por terem nascido na mesma época, compartilham um mesmo “espírito”[20]. Sublinham a semelhança entre a descoberta do inconsciente por Freud, que divide o sujeito definitivamente e a quebra na organização espacial tradicional, vigente desde o Renascimento, exemplarmente presente na pintura de Paul Cézanne. Porém, Ponce vai além ao propor que, com o divórcio entre a imagem e o sentido que ocorre na arte moderna, há uma quebra entre a obra de arte e o artista e o espectador. A arte parece ter ficado livre das amarras das convenções e exigências estéticas. Porém, do outro lado está o espectador, que jogado frente à obra de arte deriva em sua solidão. Ele é olhado pelo objeto artístico sem que possa lançar mão de um sentido protetor.

4º Elo: A arte sinthomática
A quarta maneira em que a arte é incluída na teoria lacaniana, não pode a rigor ser considerada com o mesmo enquadramento das outras três concepções.
A arte como um bem, arte bela e a arte sublime são conjecturas conceituais. O objeto de estudo é a arte que se mostra compreendida pela teoria. A arte como quarto elo contém uma mudança radical de enfoque. De maneira totalmente diversa, a arte comparece como um elemento importante na construção da própria teoria lacaniana acerca da estrutura subjetiva.
A constituição humana para Freud está ancorada nos ternários consciente/inconsciente/préconsciente e eu/isso/supereu; para Lacan, a subjetividade se constitui entre o simbólico, o imaginário e o real e está dividida entre saber e verdade[21].
É no intuito de evidenciar teoricamente a paradoxal constituição da subjetividade humana que Lacan se aventura pela topologia. E é com a ajuda desta lógica que ele procura demonstrar o indizível.
A topologia borromeana dos nós foi elaborada por Lacan a partir do emblema de uma família de nome Borromeu[22]. É uma figura onde há um entrelaçamento de três elos. O enodamento é tal que se um deles for cortado o laço todo se desfaz. O desenho foi providencial para Lacan demonstrar as relações entre o simbólico, o imaginário e o real. Foi possível expor a existência de uma equivalência de importância entre os registros e ao mesmo tempo demonstrar que cada um deles possui propriedades distintas. Os três elos do nó Borromeano têm diferentes predicados; no imaginário está situado o suporte da consistência, a aquisição da imagem corporal pelo sujeito; o simbólico tem o furo como sendo o que lhe é essencial, o que faz com que se produza diferença; e o real sua ex-sistência que é relativa ao impossível, a não existência da relação sexual, ao fato de que a articulação dos três registros não proporciona ao sujeito um Outro do Outro.
No Seminário RSI Lacan demonstra a importância de que um quarto laço venha realizar a função de manter o enlace entre os registros como também delimitar a necessária distinção entre eles. Esta hipótese é fundamentada nos conceitos freudianos do complexo do Édipo e de realidade psíquica e recebe de Lacan o título de Nome-do-Pai. Ocorre, porém que a constituição subjetiva não é estável, algo sempre falha e o que sempre falha, pelo menos em parte, é o Nome-do-Pai em sua simbolização do real pulsional. Os sintomas surgem como remendos na função paterna. O sintoma está no próprio lugar onde o nó rateia, onde está o lapso do nó[23]. No caso das psicoses a teoria borromeana sofre um complicador a mais, pois esse adoecimento psíquico se caracteriza pela não inscrição no campo do Outro do significante do Nome-do-Pai. Para o psicótico não é possível a construção de uma fantasia, uma frase simbólica que venha, através do gozo fálico, demarcar o gozo enigmático do Outro. Isto é, encontrar como sujeito sua resposta à demanda da mãe [24]. O que nos leva a considerar que na psicose, pela falta do Nome-do-Pai o nó se desfaz, há a eclosão do delírio e a invasão no imaginário.
Porém, a arte de James Joyce escritor irlandês que revolucionou a literatura, vem “embaraçar”[25] Lacan que o considerava psicótico.
Saussure nos ensinou que os signos antes de remeterem a qualquer coisa do mundo, remetem, quando se quer saber seu valor, a outros signos. Consideração da qual é retirada a descoberta de que a linguagem nasceu a partir da criação do recurso metafórico e, por isso mesmo, comporta como característica um mal entendido fundamental. É intrínseco à palavra ser portadora de um equívoco. Em contrapartida, há em algum ponto do discurso algo que não engana. Não é possível fazer funcionar a atividade discursiva sem o estabelecimento de um acordo mínimo, mesmo que arbitrário, de atribuição de sentido. Lacan analisa a escrita de Joyce, a descreve como tendo uma forma diferenciada de relação com a instância da letra. Destaca as Epifanias utilizadas por Joyce em seus livros como sendo testemunhas de um esvaziamento radical da capacidade de articular a experiência. Lacan explica que neste tipo de escrita onde trechos de conversas são retirados de seu contexto natural pelo autor e transferidos para dentro de seu texto, o Simbólico e o Real estão entrelaçados, mas o imaginário fica solto, fora, tornando incompreensível a mensagem, já que o sentido reside na interseção do Simbólico com o Imaginário.
A escrita de Joyce, de forma geral é não tributária do sentido, pois o que mais importava ao autor de Ulisses era a musicalidade das letras e das palavras. Os enigmas contidos em sua escrita não são de fácil desvendamento por carecerem de metáforas orientadoras. Ele manipulava a língua inglesa e neste jogo de letras, palavras e sons, acabava por produzir uma nova língua. A partir do que novos sentidos puderam ser construídos, mesmo não sendo estes muito compartilháveis. Joyce trabalhava diretamente no real da letra e deste trabalho extraia seu gozo.
No caso de Joyce, o quarto elo que produziu uma articulação capaz de sustentar sua estrutura psíquica não poderia ser o Nome-do-Pai. Lacan considera que foi a obra de Joyce que assegurou sua estabilidade psíquica, a responsável pelo não desencadeamento de um surto psicótico.
A estrutura de Joyce não pôde se valer do sintoma neurótico, como costura nas falhas presentes no Nome-do-Pai. No lugar do quarto laço Joyce teve que inventar o que Lacan chamou de Sinthoma. Para além de simples retificações ou emendas, o Sinthoma é ele próprio o laço. Lacan propõem que a escrita de Joyce, seu sinthoma, era sua forma privilegiada de gozo, um gozo que estava além da demanda do Outro.
No entanto Lacan acredita que o motivo pelo qual Joyce pode se salvaguardar de um surto não foi só sua possibilidade de utilizar a arte como barra à invasão no Simbólico pelo gozo do Outro, transformando este gozo em uma versão sua. Lacan acredita que foi fundamental para o equilíbrio psíquico de Joyce a construção de um nome próprio que adveio do reconhecimento público de seu valor artístico. E esta necessidade era claramente explicitada por Joyce quando ele dizia que faria os críticos, letrados, universitários e demais leitores ficarem ocupados com seus escritos por 300 anos. Lacan acredita que a valorização de seu nome próprio pelo mundo era como uma compensação onde houve uma demissão paterna. O Sinthoma de Joyce foi o de as expensas de seu pai, escrever seu nome no mundo através de sua arte, assegurando-lhe um lugar enquanto sujeito.
A direção do tratamento das psicoses adquire, com estas formulações, uma nova perspectiva. Até então a única possibilidade para a psicose era a constituição de um delírio. A escrita sinthomática de Joyce adiciona a possibilidade de construção de uma suplência ao Nome-do-Pai que não passa pelo delírio. Qual seja: a invenção pelo sujeito de seu sinthoma, sua forma singular de gozo. E, através desta construção, em uma escala que lhe seja possível, a inscrição de seu nome próprio no social. Essa operação possibilita que, por um lado se mantenha a falta, que é condição para o exercício da subjetividade e, por outro, garante uma atribuição de potência ao sujeito permitindo que ele não se defenestre nesta falta.
Com o quarto Elo deste arranjo sobre a arte na teoria lacaniana, o incômodo de Lacan, exposto no seminário 7, de reclamar um lugar maior para a arte do que a de ser uma professora do colegiado psicanalítico é aclarado. Somos mesmo ‘catadores de migalhas...’, é o que pensamos quando vemos surgir um Lacan que propõe que a arte possa ocupar o lugar de 4º Elo. O lugar do Nome-do-Pai. Fazer suplência desta falta. A arte, neste momento da teoria lacaniana assume a função de amarrar o simbólico , o imaginário e o real, proporcionando certo arranjo, mesmo que bastante singular, da subjetividade. Isto não é pouco, é talvez o que nós analistas tanto almejamos quando tratamos de sujeitos psicóticos em profundo sofrimento mental.

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[1] Lacan, J. – O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p. 289.
[2] Freud, S. – “Projeto para uma psicologia científica” (1895).
[3] Lacan, J. – O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p.149.
[4] Lacan, J. – O Seminário R.S.I.. (1974-75).
[5] Freud, S. – “Totem e Tabu” (1913 [1912 – 1913])
[6] Lacan, J. “Ciência e Verdade” (1965), in Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998. p. 871.
[7] Lacan, J. – O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p.162.
[8] idem, ibidem p. 151.
[9] Lacan, J. – O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p.176.
[10] idem, ibidem p.175.
[11] Referência a tese de doutorado de Giselle Falbo. “Para que serve? Quanto vale? Reflexões da psicanálise sobre a crise da arte.” UFRJ.
[12] Lacan, J. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p. 266.
[13] idem, ibidem. p. 302.
[14] idem, ibidem p.186.
[15] Lacan, Jacques. O Seminario, livro 4: La Relación de Objeto- La primacía del falo y la joven homosexual. (9 de Enero de 1957) em CD Rom.
[16] Ponce, X. G. – “Conferencia Sobre las Paradojas (contemporáneas) de la Satisfacción” . in: Ornicar? digital: liste des articles publieis, Online.
[17] Barbas, H. – O Sublime e o Belo, de Longino a Edmund Burke. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Departamento de Estudos Alemães http://www.fcsh.unl.pt/docentes/hbarbas/SublimeHBarbas.htm
[18] Ponce, Xavier Giner – “Sobre parejas modernas: el espectador y la obra del arte” in: sit internet: Ornicar? digital: liste des articles publieis. Online.
[19] Ponce, Xavier Giner – “Conferencia Sobre las Paradojas (contemporáneas) de la Satisfacción.”
[20] Entre outros: Rivera, T. op. cit. e Kon, N. M. – Freud e seu duplo: Reflexões entre Psicanálise e Arte.
[21] Porge, E. – Os nomes do pai em Jacques Lacan: pontações e problemáticas. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.
[22] Freire, M. M. – A escritura psicótica, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2001.
[23] Lacan, J. – O Seminário 23 – O Sinthoma CD Rom
[24] Freire, M. M., op. cit.
[25] Em espanhol engravidar.

“Clínica com arte: considerações sobre a arte no tratamento psicanalítico no campo da saúde mental”

No Brasil, Nise da Silveira é o nome mais conhecido com respeito à valorização da produção artística da loucura, porém ela própria se negou o título de pioneira e atribuiu a Osório César este feito[2]. Psiquiatra do Juqueri em São Paulo, Osório reuniu em 1929 sua experiência no livro: Expressão artística dos alienados - Estudos dos Símbolos na Arte. O autor recebeu uma carta de Freud, a quem remetera seu livro, dizendo-lhe causar satisfação o interesse pela psicanálise no Brasil[3]. Quando Durval Marcondes e Franco da Rocha fundam a Sociedade Brasileira de Psicanálise, em 1927, Osório figurava entre os 24 primeiros membros. O acervo com mais 5 mil obras, que reuniu durante sua vida está reunido no Museu Osório César na antiga residência Dr. Franco da Rocha.
Nise da Silveira criou o seu ateliê terapêutico no então Hospital Psiquiátrico Pedro II, em 9 de setembro 1946[4], após retornar ao trabalho do qual fora afastada pela ditadura de Getúlio Vargas. Nise recusou-se a utilizar os métodos vigentes na época como o eletrochoque e a lobotomia. Ela buscava penetrar nas dimensões dos processos inconscientes revelados por meio do estudo das imagens e símbolos. Sua análise era feita através de comparações com a história das religiões e da arte, da mitologia etc., numa verdadeira arqueologia da psique. Este método teve forte influência de Jung que tomou conhecimento do trabalho desenvolvido por Nise no 2º Congresso Internacional de Psiquiatria em 1957 em Zurique.
Devido à atribuição do valor artístico às obras de arte criadas pelos psicóticos, alcançada com a colaboração Mario Pedrosa, o que a princípio foi somente experimentação de um modo de tratar mais humano, tornou-se um dos argumentos mais contundentes pela ‘desestigmatização’ da loucura já que a arte é uma atividade humana de alto valor social.
Junto à experiência de Osório e Nise vieram outras instituições que utilizam o recurso de incentivar a criatividade dos sujeitos acometidos por intenso sofrimento mental. Essas experiências contribuíram para que uma outra política de saúde mental fosse instaurada no Brasil. Podemos dizer que a direção na saúde mental pela desinstitucionalização teve como um dos seus precursores o trabalho desenvolvido com arte nos antigos manicômios.
No fim dos anos 70 com o início da Reforma psiquiátrica a hegemonia do saber médico sobre a loucura fica abalada, favorecendo a entrada de outros saberes no campo da saúde mental. Mesmo com esta abertura, os psicanalistas que atuavam nas instituições públicas em sua maioria não se assumiam como tais, como demonstra a pesquisa realizada na década de 90 por Figueiredo[5]. Figueiredo propõe a desconstrução de uma série de pré-requisitos formais ortodoxos instituídos historicamente como sendo indispensáveis para a definição da prática da psicanálise e, ao mesmo tempo, se preocupa em deixar claro que essa desconstrução não autoriza que a prática psicanalítica possa abrir mão de seus critérios básicos e definidores. Muitos autores e psicanalistas atuantes no campo da saúde mental, principalmente os lacanianos se somaram às posições defendidas por Figueiredo e um movimento em prol da psicanálise se estabeleceu. Hoje os psicanalistas assumem sua filiação teórica e se firmam no contexto da saúde mental.
Muitos autores têm se ocupado pela maneira com a qual a psicanálise está na saúde mental. As posições são várias e animam muitas discussões. O conceito de dispositivo psicanalítico ampliado, apesar de atenuar, não dissolve as diferenças presentes nas diversas concepções. O eixo principal do debate é: o que ocorre na instituição pode ser descrito como efeitos de sujeito provocados pela ação da psicanálise ou a psicanálise está em stricto sensu na instituição?
Na matéria da psicanálise gratuita em instituições, parece ser consenso entre os psicanalistas que, mesmo que com roupagens diversas, a psicanálise está na saúde mental enquanto um recurso teórico/clínico e que é preciso sustentá-la. Freud deixou claro sua posição de apoiar a contribuição da psicanálise no tratamento da ‘miséria neurótica que existe no mundo’, reconhecendo que o pobre também tem direito à assistência mental. Ao mesmo tempo, mostrou preocupação que a psicanálise, ao entrar neste novo terreno, não abrisse mão de seus fundamentos[6].
Na atualidade a criação artística está presente em muitos serviços, principalmente os direcionados à clientela mais grave. É um recurso que se mostra eficaz no sentido de oferecer certa estabilização psíquica e de facilitar reflexões. Entretanto, esta prática não tem sido matéria de pesquisa no campo da psicanálise freudiana/lacaniana. O estudo relativo à aplicabilidade da arte na psicanálise é uma espécie de inversão, normalmente a psicanálise é que é aplicada à arte.
Na entusiástica discussão sobre a presença da psicanálise no campo da saúde mental a arte também não é incluída. Porém, estes três campos: Arte, Saúde Mental e Psicanálise estão legitimamente presentes na clínica que exerço. E é no contexto de sustentação do discurso psicanalítico no campo da Saúde Mental – onde se procura estabelecer uma clínica com rigor teórico, afinada com a ética psicanalítica – que me lanço no desafio de articular a psicanálise com arte.
Este estudo é fruto do trabalho desenvolvido no CAPS Infantil Eliza Santa Roza, uma instituição pública municipal de saúde mental que prioriza o tratamento de crianças e adolescentes psicóticos, autistas e neuróticos graves. A equipe não é formada somente por psicanalistas, porém temos concordado que a psicanálise dê a direção da clínica que exercemos.
No serviço há diversos dispositivos de atenção às crianças, porém o que chamamos de ‘Convivência’ é o que se tornou príncipe de nosso atendimento. Ela se assemelha a ‘pratique a plusieurs’[7], uma forma de atenção iniciada em 1990 por alguns psicanalistas europeus em instituições para crianças autistas e psicóticas[8]. É um dispositivo clínico que acontece tanto na pluralidade das crianças quanto dos que as tratam, além de se realizar em múltiplos espaços e nos vários tempos envolvidos no tratamento. A pessoa que oferece o tratamento se coloca em posição dessubjetivada, à escuta do que vai subordinar sua ação. Essa prática promove que a função de analista e a função de sujeito façam laço.
Há dois espaços de tratamento que participo, aonde efeitos interessantes vêm ocorrendo quando a arte vem se somar à psicanálise. Neles, o fazer artístico não está relacionado à produção de obras de arte, valorizadas socialmente. Inclusive, pode não haver objeto ao final do trabalho. Não há determinação prévia, nem obrigatoriedade relativa à atividade, ela é escolha de cada um, podendo ser exercida em grupo ou isoladamente, geralmente ocorrem várias atividades ao mesmo tempo. Consideramos que não há incompatibilidade com a prática psicanalítica o oferecimento de algum material, desde que a razão que oriente o oferecimento esteja ancorada na clínica do sujeito e não em uma demanda do analista.
O primeiro espaço em que a arte se apresenta na clínica era inicialmente chamado de ‘oficina de arte’. Ela foi criada quando o serviço estava deixando de ser um ambulatório para se tornar um CAPSI. Porém a denominação ‘oficina’ leva a muitos equívocos, é um termo utilizado para descrever inúmeras práticas terapêuticas, inclusive algumas não tão terapêuticas assim. Muitas vezes é uma atividade dirigida onde a preocupação com o produto final se sobrepõe ao trabalho psíquico. Foi por esta razão que fomos parando de nomeá-la ‘oficina’ e incorporando-a ao dispositivo de ‘Convivência’ que ocorre no mesmo momento.
A oficina ‘explodiu’, sendo incorporada pelo dispositivo ‘Convivência’, mas também o contaminou com outros recursos que antes não eram utilizados. Vou expor brevemente algumas das diferentes formas, que não são excludentes entre si, de como a arte vem comparecendo no tratamento.

1) A arte mediando o encontro – O trabalho com a arte, parece ter uma vantagem no que concerne aos impasses da transferência. O desvio de atenção provocado no analisando pelo fazer artístico pode ser manejado pelo analista, já que os materiais utilizados, a obra e o próprio fazer artístico, para onde se dirigiu o interesse do paciente são, ‘em si mesmos’, um nada, um sem significado prévio. A arte que medeia o encontro funciona como o ‘mais um’, que dilui a sensação de invasão e ajuda a barrar o Outro. O momento de criação pode permitir que se dê o laço analítico, ao fazer a pessoa que habita o analista desvanecer-se, o analista conta com esta ajuda em sua dessubjetivação.

2) Interpretação da arte – Não se trata que a arte criada venha a ser uma ‘psicobiografia’ de seu autor, que vá dar sua contribuição se aliando a psicanálise para desvendar o lado obscuro da mente do paciente. Opera-se de um lugar delicado, o de não obter uma leitura contaminada pela própria vivência e, selvagemente, oferecê-la ao paciente como verdade; e tampouco de ‘sair da reta’ da transferência, usando a teoria como escudo ao realizar uma correspondência direta entre a criação e significado. Não acreditamos em uma técnica ou um manual de interpretação da arte em psicanálise, O traçado do analista que relaciona obra à experiência de vida do analisando inclui saber que o que foi criado é uma reedição endereçada. A intervenção ocorre como indicação de um possível sentido, dentre outros, um sentido como direção, não um significado, reconhecendo-se que sempre resta algo de não dito que alimenta o deslizamento dos significantes. Se o ato do psicanalista for na direção de um significado, mesmo se este significado for um novo significado, ele poderá ser um ato de mestre, mas jamais um ato psicanalítico. A ênfase não está no que foi criado e sim na possibilidade de que haja criação.

3) Intervenção na arte – Esta intervenção se assemelha à intervenção na brincadeira. Na psicanálise com crianças, muitas vezes, ao invés de interpretar uma brincadeira, nós intervimos na brincadeira, brincamos com a criança sabendo que o que estamos fazendo é coisa muito séria. Na psicanálise com arte podemos intervir participando na arte que está sendo criada e, assim, promover um exercício de deslocamento de sua posição subjetiva. As intervenções são recebidas com menos resistência pelo sujeito psicótico do que intervenções verbais diretamente vinculadas às suas questões. Colocamos elementos, mudamos uma ordenação repetitiva, adicionamos algum tipo de novidade, de surpresa ou diferença no que esta sendo produzido. Temos notado que as transformações produzidas nas artes tem se refletido no comportamento dos pacientes. Como se eles aprendessem que também é possível criar várias formas de estar no mundo. Cito o caso de uma mocinha, a quem vou dar o nome de Emília. Sempre que ela chegava pedia para fazer colares e pulseiras. Ela sentava à mesa e construía colares na cor rosa. Resolvi interferir em sua criação e propus que misturasse cores. Inicialmente ela aceitou colocar a mais só a cor vermelha, depois passou a combinar outras cores diferentes. Na medida em que ia adicionando novas cores aos seus colares, ia também transformando a maneira com que se vestia. Assim como seus colares Emília, inicialmente, usava basicamente o rosa para se vestir e aos poucos foi utilizando outras cores. Hoje se veste de forma bastante variada. Outra mudança observada foi o seu comportamento com os outros, ela era muito tímida e ultimamente está bem mais sociável. Misturou as cores e também pode se misturar mais com as pessoas.
A atividade artística, o ato criativo, apresenta-se nesta clínica que se pretende sustentada no discurso psicanalítico – como equivalente ao brincar na forma como é descrito por Freud. O brincar na infância é o traço da imaginação criativa que poderá futuramente se desenvolver em arte.
Apresento outro fragmento de caso clínico. Uma adolescente, que vou chamar de Clara, chegou para nós trazida pela instituição na qual morava, com o diagnóstico de retardo mental. Este retardo escondia uma estrutura, que não podíamos precisar, porém Clara apresentava uma fala quase inexistente e um discurso bastante fragmentado, o que nos indicava a possibilidade de estarmos diante de um caso de psicose. Um dia, na ‘oficina de arte’ – ainda a chamávamos assim – quando cortávamos e colávamos eu distraidamente fiz uma sanfona de homenzinhos, um grudado no outro a partir de um mesmo papel. Clara se interessou pelos bonequinhos e quis, junto comigo, traçar separações entre eles com pilôs. Esta brincadeira artística rendeu muitas falas a medida que íamos decidindo e fazendo juntas as separações. Escolhíamos as cores, o trajeto do traçado e tudo mais que envolvia esta criação. Ao final, a obra havia ficado muito interessante e resolvemos colocá-la na parede. A partir deste dia, Clara passou a falar muito mais nos nossos encontros e seu tratamento acabou apresentando um desenvolvimento muito melhor do que o prognóstico inicial.

4) A arte como analista ou a Arte Sinthomática – Há momentos em que os pacientes parecem estar realizando algum tipo de ‘elaboração’ enquanto criam, que nós não tomamos parte e, muitas vezes, ocorrem melhoras independentes de nossas intervenções, só por deixá-los criar. Parece ser, a partir da possibilidade deste modo de relação entre o paciente e a arte, neste encontro onde o analista é dispensável, que podemos compreender o fato de muitos loucos artistas atingirem algum tipo de estabilização ou equilíbrio só por criarem. Indo um pouco além, podemos pensar que talvez seja essa a explicação para haverem tantas oficinas de arte em lugares de tratamento da loucura, onde os pacientes efetivamente alcançam melhoras sem que haja muitas vezes nenhum analista por perto.
Lacan[9] nos fala da arte como algo que pode fazer função de quarto elo no nó borromeano. Funcionar como suplência do Nome-do-Pai e assim sustentar uma organização singular, que possibilite ao sujeito um gozo próprio que o liberte de ser o objeto do gozo do Outro. A conseqüência clínica desta concepção é a existência de haver outra possibilidade de estabilização psíquica do psicótico, que não só a atingida através da estruturação do delírio. É possível a construção pelo sujeito psicótico de uma versão própria do desejo da mãe, isto é, a passagem do sintoma ao sinthoma, tendo como conseqüência um estilo singular. Podemos lembrar aqui Joyce e seu saber-fazer com seu sintoma, ele o transformou em um traço de singularidade, de criação, que o fez alcançar o estatuto de sinthoma. Também podemos nos recordar de Freud, quando propunha a arte como a possibilidade de se estabelecer um caminho de volta a uma realidade de um novo tipo[10]. Quando a subjetividade fica paralisada em meio a um conflito psíquico o artista tem a arte para restabelecer com sua criatividade seus laços com o mundo.

5) A arte na clínica com crianças pequenas psicóticas e autistas - O espaço da convivência com pequenos no CAPSI em que vêm ocorrendo a entrada da arte ao qual vou me reportar é composta por três técnicos: eu, Benita Michahelles e Joana Dulcetti Vibranovski. Nele a arte vem se infiltrando lentamente e começou a ocorrer depois dele estar constituído. O autismo e a psicose infantil são adoecimentos psíquicos que apresentam ainda uma clínica incipiente. Durante a convivência procuramos nos deixar guiar pelas próprias crianças, não há uma fórmula pronta a qual possamos copiar. Em nossas reuniões de fim de turno fica claro que não traçamos soluções, mas um passo, até o próximo impasse. Acredito que nossa clínica não está só afinado com o Caso a Caso – modelo ‘anti-apriorístico’ da psicanálise – ela parece ser a do momento-a-momento, porque em um mesmo caso a direção encontrada sempre pode mudar. Há, no entanto, um ponto de partida do qual todas as intervenções que dirigimos às crianças respeitam: Consideramos que seus atos são atos significantes e que estes são produtos de sujeito. O que não significa dizer que sempre apoiamos suas ações, já que às vezes são fruto de um gozo do qual elas são escravas, que as domina.
Parecia um absurdo total oferecer às crianças completamente desorganizadas, sem fala, com movimentos repetitivos, materiais de artes. Porém, muitas se interessam e utilizam o material para realizarem suas incursões nas artes. Às vezes criamos com elas, às vezes secretariamos. Estamos atentos para nos mantermos firmes na difícil tarefa de não nos deixar levar pela conduta disciplinar. É preciso criar espaço para que o sujeito possa vir a se inventar. Acredito que a experiência tem sido bem sucedida muito porque a equipe que trabalha neste dia apresenta grande sintonia. Nossas reuniões são muito ricas em trocas.
Para testemunhar com a prática este relato da experiência da arte com autistas e psicóticos infantis, trago dois momentos do entrecruzamento da arte com a psicanálise no tratamento de duas crianças autistas.
O primeiro acontece com um menino de cinco anos que vou chamar de Isaías. Soube, através dos atendimentos individuais feitos a seus pais, que a mãe de Isaías não conseguia negar-lhe o seio. Para desmamá-lo ela teve que se valer de uma artimanha. Passou mercúrio cromo no peito e, mostrando-lhe, disse-lhe que estava machucada, razão pela qual não poderia lhe dar de mamar. Ao introduzirmos os materiais de artes na convivência, Isaías mostrou rapidamente predileção por uma atividade. O menino, com um pilot vermelho, rabisca as fotos das mulheres, e concentra seus riscos na região dos seios. Outra arte que Isaías gosta muito de fazer é recortar as figuras das revistas e depois colá-las remontando a revista. Outro dia pus-me a fazer uma colagem ao seu lado, e para isso tínhamos que compartilhar a mesma cola. Cada vez que eu pegava a cola Isaías reclamava muito, dava berros e pulos para que eu a devolvesse. Eu, por minha vez, calmamente avisava que depois de usar eu a devolveria. Isso se repetiu muitas vezes, porém, a cada vez ele ia berrando menos. Fui falando com ele, dizendo que ele podia acreditar em mim, que eu sabia que era difícil pra ele acreditar porque em sua casa o sim e o não eram confusos: “Eu quero te dar o peito, mas eu não posso”, aquilo era um não fingido de sim e ao mesmo tempo um sim que na verdade era um não. No fim não existia nem sim nem não. Quando ele ouviu a argumentação de que aqui era diferente, que ele podia acreditar no meu não e no meu sim, ele olhou, deu um largo sorriso e acenou um sim com a cabeça. Ao final pode acreditar que eu devolveria a cola, chegando a entregá-la na minha mão quando eu pedia.
O outro fragmento de caso clínico oferece um colorido que só a prática pode proporcionar. Aconteceu com um menino de 7 anos que vou chamar de Caíque. Seus pais vêm repetidamente falando sobre quererem que Caíque passe da turma especial de condutas típicas para a turma regular na escola. O menino já fez uma avaliação, por insistência deles junto à 7ª CRE e não foi considerado apto a mudar de turma. Porém os pais não se contentam e constantemente retornam ao assunto. Caíque fica muito inquieto com tudo isso. Seu pai comenta, em atendimento, que Caíque não foi aceito na turma regular porque não sabia escrever, que esta é a condição, estar alfabetizado. Neste dia, Caíque com uma vareta nas mãos fez riscos na areia. Perguntei se ele estava escrevendo e comentei que havia conversado com seu pai sobre a escola e sobre a avaliação pela qual passou. Caíque me olhou muito firmemente, se levantou, e começou a fazer sua arte. Ele ia até a mesa em que estavam as tintas, lambuzava a mão com determinada cor, saía da sala e marcava na parede do lado de fora, lavava a mão na torneira e voltava, escolhia outra cor e fazia o processo todo outra vez. Acabou ficando muito interessante, tanto que mantivemos a pintura na parede, ela sugere um caminho feito de mãos, tem muito movimento e cores variadas. Quando Caíque terminou sua ‘obra’, chamou a mãe para mostrar-lhe a escrita que ele havia criado ali.
O trabalho com arte com crianças autistas só pode ocorrer por que supomos sujeitos ali e, a esta suposição, eles respondem com suas criações. Procuramos, utilizando a arte, dar suporte para que seja possível algum encadeamento, uma ordenação lógica em seus significantes soltos. Oferecemos a possibilidade da arte servir como uma base, onde o inconsciente comece a se articular em discurso. As crianças autistas que chegaram para o tratamento sem recurso verbal hoje falam, algumas mais, outras menos.
A aplicabilidade da arte na clínica psicanalítica no cenário do tratamento psíquico atual ainda está se inaugurando. Apresentamos a hipótese de que a arte possa ajudar o sujeito a inventar uma forma de estabelecer seu contorno singular em torno do vazio. Sustentamos, a partir de nossa experiência clínica, a arte como um elemento que contribuí para que o paciente possa visitar sua fantasia (na neurose) ou construir um delírio e, na melhor das hipóteses, fazer suplência ao Nome do Pai (na psicose) ou ainda, para que o inconsciente comece a se articular em discurso (no autismo).
Certamente ainda sobrou muito para ser aprofundado. Estabelecer a clínica psicanalítica com arte é um desafio que pretendo continuar construindo com rigor teórico e dentro da ética da psicanálise. Acredito que esta pesquisa proporcionou que uma porta fosse aberta.












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[1] Mestranda da UERJ – Pesquisa e Clínica em Psicanálise, Psicanalista do CAPSI Eliza Santa Roza, Supervisora Clínica – Institucional da Clínica das Amendoeiras
[2] MELLO, L. C. – “Flores do abismo” in: Mostra do Descobrimento. Nelson A. (org) / Fundação Bienal de São Paulo – S.P. : Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000.
[3] A exposição: “Arte e Inconsciente: Três Visões sobre o Juqueri”, que ocorreu em Belo Horizonte em 18 de Agosto de 2003 no Instituto Moreira Salles, teve exposta esta carta de Freud ao médico Osório César, elogiando o seu trabalho “com a potencialidade de pacientes psiquiátricos”.
[4] Hoje o Hospital leva seu nome: Instituto Municipal Nise da Silveira.
[5] Figueiredo, A. C . – “Vastas confusões e atendimentos imperfeitos”, (1997)
[6] Freud, S. – “Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica” (1919[1918]) vol.XVII p. 210 e 211
[7] Expressão usada por Antonio Di Ciaccia, que foi sustentada conceitualmente por Jacques-Alain Miller Mantenho a expressão em francês por não haver consenso no Brasil sobre o melhor termo para designá-la, se prática feita por vários ou entre muitos.
[8] Antonio Di Ciaccia (dir.) La pratique a plusieurs em institution Publication du Champ Freudien em Belgique: Preliminaire; ACTES des Troisièmes Journées du Réseau International d’Institutions Infantiles. Bruxelles, 1-2 février 1997.
[9] Lacan, J. O seminário 23 - O Sinthoma CD Rom
[10] Esta idéia é apresentada por Freud nas “Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise” (1916-17 [1915-17]), “Formulações sobre os dois Princípios do Funcionamento Mental” (1911) e “Um Estudo Autobiográfico” (1925 [1924]).

sexta-feira, julho 07, 2006

CURRICULUM Resumido



Sandra Autuori é psicanalista e artista. Tem se dedicado à interface arte e saúde mental em suas pesquisas teóricas e em sua prática clínica. Trabalha na saúde pública como diretora do (CAPSij) Centro de Atenção Psicossocial Infantil Heitor Villa Lobos, como professora da graduação em Psicologia e pós graduação em psicanálise da Universidade Santa Ursula e em consultório particular.  Concluiu o doutorado em Estudos da Subjetividade da UFF com a tese: "Ateliê de vídeo, um dispositivo clínico coletivo no campo da atenção psicossocial". Concluiu o  mestrado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise na UERJ com a tese: "Arte e Psicanálise - Considerações sobre a arte na psicanálise".  Continua a atuar como atriz e a realizar vídeos de arte.