sábado, julho 08, 2006

“Clínica com arte: considerações sobre a arte no tratamento psicanalítico no campo da saúde mental”

No Brasil, Nise da Silveira é o nome mais conhecido com respeito à valorização da produção artística da loucura, porém ela própria se negou o título de pioneira e atribuiu a Osório César este feito[2]. Psiquiatra do Juqueri em São Paulo, Osório reuniu em 1929 sua experiência no livro: Expressão artística dos alienados - Estudos dos Símbolos na Arte. O autor recebeu uma carta de Freud, a quem remetera seu livro, dizendo-lhe causar satisfação o interesse pela psicanálise no Brasil[3]. Quando Durval Marcondes e Franco da Rocha fundam a Sociedade Brasileira de Psicanálise, em 1927, Osório figurava entre os 24 primeiros membros. O acervo com mais 5 mil obras, que reuniu durante sua vida está reunido no Museu Osório César na antiga residência Dr. Franco da Rocha.
Nise da Silveira criou o seu ateliê terapêutico no então Hospital Psiquiátrico Pedro II, em 9 de setembro 1946[4], após retornar ao trabalho do qual fora afastada pela ditadura de Getúlio Vargas. Nise recusou-se a utilizar os métodos vigentes na época como o eletrochoque e a lobotomia. Ela buscava penetrar nas dimensões dos processos inconscientes revelados por meio do estudo das imagens e símbolos. Sua análise era feita através de comparações com a história das religiões e da arte, da mitologia etc., numa verdadeira arqueologia da psique. Este método teve forte influência de Jung que tomou conhecimento do trabalho desenvolvido por Nise no 2º Congresso Internacional de Psiquiatria em 1957 em Zurique.
Devido à atribuição do valor artístico às obras de arte criadas pelos psicóticos, alcançada com a colaboração Mario Pedrosa, o que a princípio foi somente experimentação de um modo de tratar mais humano, tornou-se um dos argumentos mais contundentes pela ‘desestigmatização’ da loucura já que a arte é uma atividade humana de alto valor social.
Junto à experiência de Osório e Nise vieram outras instituições que utilizam o recurso de incentivar a criatividade dos sujeitos acometidos por intenso sofrimento mental. Essas experiências contribuíram para que uma outra política de saúde mental fosse instaurada no Brasil. Podemos dizer que a direção na saúde mental pela desinstitucionalização teve como um dos seus precursores o trabalho desenvolvido com arte nos antigos manicômios.
No fim dos anos 70 com o início da Reforma psiquiátrica a hegemonia do saber médico sobre a loucura fica abalada, favorecendo a entrada de outros saberes no campo da saúde mental. Mesmo com esta abertura, os psicanalistas que atuavam nas instituições públicas em sua maioria não se assumiam como tais, como demonstra a pesquisa realizada na década de 90 por Figueiredo[5]. Figueiredo propõe a desconstrução de uma série de pré-requisitos formais ortodoxos instituídos historicamente como sendo indispensáveis para a definição da prática da psicanálise e, ao mesmo tempo, se preocupa em deixar claro que essa desconstrução não autoriza que a prática psicanalítica possa abrir mão de seus critérios básicos e definidores. Muitos autores e psicanalistas atuantes no campo da saúde mental, principalmente os lacanianos se somaram às posições defendidas por Figueiredo e um movimento em prol da psicanálise se estabeleceu. Hoje os psicanalistas assumem sua filiação teórica e se firmam no contexto da saúde mental.
Muitos autores têm se ocupado pela maneira com a qual a psicanálise está na saúde mental. As posições são várias e animam muitas discussões. O conceito de dispositivo psicanalítico ampliado, apesar de atenuar, não dissolve as diferenças presentes nas diversas concepções. O eixo principal do debate é: o que ocorre na instituição pode ser descrito como efeitos de sujeito provocados pela ação da psicanálise ou a psicanálise está em stricto sensu na instituição?
Na matéria da psicanálise gratuita em instituições, parece ser consenso entre os psicanalistas que, mesmo que com roupagens diversas, a psicanálise está na saúde mental enquanto um recurso teórico/clínico e que é preciso sustentá-la. Freud deixou claro sua posição de apoiar a contribuição da psicanálise no tratamento da ‘miséria neurótica que existe no mundo’, reconhecendo que o pobre também tem direito à assistência mental. Ao mesmo tempo, mostrou preocupação que a psicanálise, ao entrar neste novo terreno, não abrisse mão de seus fundamentos[6].
Na atualidade a criação artística está presente em muitos serviços, principalmente os direcionados à clientela mais grave. É um recurso que se mostra eficaz no sentido de oferecer certa estabilização psíquica e de facilitar reflexões. Entretanto, esta prática não tem sido matéria de pesquisa no campo da psicanálise freudiana/lacaniana. O estudo relativo à aplicabilidade da arte na psicanálise é uma espécie de inversão, normalmente a psicanálise é que é aplicada à arte.
Na entusiástica discussão sobre a presença da psicanálise no campo da saúde mental a arte também não é incluída. Porém, estes três campos: Arte, Saúde Mental e Psicanálise estão legitimamente presentes na clínica que exerço. E é no contexto de sustentação do discurso psicanalítico no campo da Saúde Mental – onde se procura estabelecer uma clínica com rigor teórico, afinada com a ética psicanalítica – que me lanço no desafio de articular a psicanálise com arte.
Este estudo é fruto do trabalho desenvolvido no CAPS Infantil Eliza Santa Roza, uma instituição pública municipal de saúde mental que prioriza o tratamento de crianças e adolescentes psicóticos, autistas e neuróticos graves. A equipe não é formada somente por psicanalistas, porém temos concordado que a psicanálise dê a direção da clínica que exercemos.
No serviço há diversos dispositivos de atenção às crianças, porém o que chamamos de ‘Convivência’ é o que se tornou príncipe de nosso atendimento. Ela se assemelha a ‘pratique a plusieurs’[7], uma forma de atenção iniciada em 1990 por alguns psicanalistas europeus em instituições para crianças autistas e psicóticas[8]. É um dispositivo clínico que acontece tanto na pluralidade das crianças quanto dos que as tratam, além de se realizar em múltiplos espaços e nos vários tempos envolvidos no tratamento. A pessoa que oferece o tratamento se coloca em posição dessubjetivada, à escuta do que vai subordinar sua ação. Essa prática promove que a função de analista e a função de sujeito façam laço.
Há dois espaços de tratamento que participo, aonde efeitos interessantes vêm ocorrendo quando a arte vem se somar à psicanálise. Neles, o fazer artístico não está relacionado à produção de obras de arte, valorizadas socialmente. Inclusive, pode não haver objeto ao final do trabalho. Não há determinação prévia, nem obrigatoriedade relativa à atividade, ela é escolha de cada um, podendo ser exercida em grupo ou isoladamente, geralmente ocorrem várias atividades ao mesmo tempo. Consideramos que não há incompatibilidade com a prática psicanalítica o oferecimento de algum material, desde que a razão que oriente o oferecimento esteja ancorada na clínica do sujeito e não em uma demanda do analista.
O primeiro espaço em que a arte se apresenta na clínica era inicialmente chamado de ‘oficina de arte’. Ela foi criada quando o serviço estava deixando de ser um ambulatório para se tornar um CAPSI. Porém a denominação ‘oficina’ leva a muitos equívocos, é um termo utilizado para descrever inúmeras práticas terapêuticas, inclusive algumas não tão terapêuticas assim. Muitas vezes é uma atividade dirigida onde a preocupação com o produto final se sobrepõe ao trabalho psíquico. Foi por esta razão que fomos parando de nomeá-la ‘oficina’ e incorporando-a ao dispositivo de ‘Convivência’ que ocorre no mesmo momento.
A oficina ‘explodiu’, sendo incorporada pelo dispositivo ‘Convivência’, mas também o contaminou com outros recursos que antes não eram utilizados. Vou expor brevemente algumas das diferentes formas, que não são excludentes entre si, de como a arte vem comparecendo no tratamento.

1) A arte mediando o encontro – O trabalho com a arte, parece ter uma vantagem no que concerne aos impasses da transferência. O desvio de atenção provocado no analisando pelo fazer artístico pode ser manejado pelo analista, já que os materiais utilizados, a obra e o próprio fazer artístico, para onde se dirigiu o interesse do paciente são, ‘em si mesmos’, um nada, um sem significado prévio. A arte que medeia o encontro funciona como o ‘mais um’, que dilui a sensação de invasão e ajuda a barrar o Outro. O momento de criação pode permitir que se dê o laço analítico, ao fazer a pessoa que habita o analista desvanecer-se, o analista conta com esta ajuda em sua dessubjetivação.

2) Interpretação da arte – Não se trata que a arte criada venha a ser uma ‘psicobiografia’ de seu autor, que vá dar sua contribuição se aliando a psicanálise para desvendar o lado obscuro da mente do paciente. Opera-se de um lugar delicado, o de não obter uma leitura contaminada pela própria vivência e, selvagemente, oferecê-la ao paciente como verdade; e tampouco de ‘sair da reta’ da transferência, usando a teoria como escudo ao realizar uma correspondência direta entre a criação e significado. Não acreditamos em uma técnica ou um manual de interpretação da arte em psicanálise, O traçado do analista que relaciona obra à experiência de vida do analisando inclui saber que o que foi criado é uma reedição endereçada. A intervenção ocorre como indicação de um possível sentido, dentre outros, um sentido como direção, não um significado, reconhecendo-se que sempre resta algo de não dito que alimenta o deslizamento dos significantes. Se o ato do psicanalista for na direção de um significado, mesmo se este significado for um novo significado, ele poderá ser um ato de mestre, mas jamais um ato psicanalítico. A ênfase não está no que foi criado e sim na possibilidade de que haja criação.

3) Intervenção na arte – Esta intervenção se assemelha à intervenção na brincadeira. Na psicanálise com crianças, muitas vezes, ao invés de interpretar uma brincadeira, nós intervimos na brincadeira, brincamos com a criança sabendo que o que estamos fazendo é coisa muito séria. Na psicanálise com arte podemos intervir participando na arte que está sendo criada e, assim, promover um exercício de deslocamento de sua posição subjetiva. As intervenções são recebidas com menos resistência pelo sujeito psicótico do que intervenções verbais diretamente vinculadas às suas questões. Colocamos elementos, mudamos uma ordenação repetitiva, adicionamos algum tipo de novidade, de surpresa ou diferença no que esta sendo produzido. Temos notado que as transformações produzidas nas artes tem se refletido no comportamento dos pacientes. Como se eles aprendessem que também é possível criar várias formas de estar no mundo. Cito o caso de uma mocinha, a quem vou dar o nome de Emília. Sempre que ela chegava pedia para fazer colares e pulseiras. Ela sentava à mesa e construía colares na cor rosa. Resolvi interferir em sua criação e propus que misturasse cores. Inicialmente ela aceitou colocar a mais só a cor vermelha, depois passou a combinar outras cores diferentes. Na medida em que ia adicionando novas cores aos seus colares, ia também transformando a maneira com que se vestia. Assim como seus colares Emília, inicialmente, usava basicamente o rosa para se vestir e aos poucos foi utilizando outras cores. Hoje se veste de forma bastante variada. Outra mudança observada foi o seu comportamento com os outros, ela era muito tímida e ultimamente está bem mais sociável. Misturou as cores e também pode se misturar mais com as pessoas.
A atividade artística, o ato criativo, apresenta-se nesta clínica que se pretende sustentada no discurso psicanalítico – como equivalente ao brincar na forma como é descrito por Freud. O brincar na infância é o traço da imaginação criativa que poderá futuramente se desenvolver em arte.
Apresento outro fragmento de caso clínico. Uma adolescente, que vou chamar de Clara, chegou para nós trazida pela instituição na qual morava, com o diagnóstico de retardo mental. Este retardo escondia uma estrutura, que não podíamos precisar, porém Clara apresentava uma fala quase inexistente e um discurso bastante fragmentado, o que nos indicava a possibilidade de estarmos diante de um caso de psicose. Um dia, na ‘oficina de arte’ – ainda a chamávamos assim – quando cortávamos e colávamos eu distraidamente fiz uma sanfona de homenzinhos, um grudado no outro a partir de um mesmo papel. Clara se interessou pelos bonequinhos e quis, junto comigo, traçar separações entre eles com pilôs. Esta brincadeira artística rendeu muitas falas a medida que íamos decidindo e fazendo juntas as separações. Escolhíamos as cores, o trajeto do traçado e tudo mais que envolvia esta criação. Ao final, a obra havia ficado muito interessante e resolvemos colocá-la na parede. A partir deste dia, Clara passou a falar muito mais nos nossos encontros e seu tratamento acabou apresentando um desenvolvimento muito melhor do que o prognóstico inicial.

4) A arte como analista ou a Arte Sinthomática – Há momentos em que os pacientes parecem estar realizando algum tipo de ‘elaboração’ enquanto criam, que nós não tomamos parte e, muitas vezes, ocorrem melhoras independentes de nossas intervenções, só por deixá-los criar. Parece ser, a partir da possibilidade deste modo de relação entre o paciente e a arte, neste encontro onde o analista é dispensável, que podemos compreender o fato de muitos loucos artistas atingirem algum tipo de estabilização ou equilíbrio só por criarem. Indo um pouco além, podemos pensar que talvez seja essa a explicação para haverem tantas oficinas de arte em lugares de tratamento da loucura, onde os pacientes efetivamente alcançam melhoras sem que haja muitas vezes nenhum analista por perto.
Lacan[9] nos fala da arte como algo que pode fazer função de quarto elo no nó borromeano. Funcionar como suplência do Nome-do-Pai e assim sustentar uma organização singular, que possibilite ao sujeito um gozo próprio que o liberte de ser o objeto do gozo do Outro. A conseqüência clínica desta concepção é a existência de haver outra possibilidade de estabilização psíquica do psicótico, que não só a atingida através da estruturação do delírio. É possível a construção pelo sujeito psicótico de uma versão própria do desejo da mãe, isto é, a passagem do sintoma ao sinthoma, tendo como conseqüência um estilo singular. Podemos lembrar aqui Joyce e seu saber-fazer com seu sintoma, ele o transformou em um traço de singularidade, de criação, que o fez alcançar o estatuto de sinthoma. Também podemos nos recordar de Freud, quando propunha a arte como a possibilidade de se estabelecer um caminho de volta a uma realidade de um novo tipo[10]. Quando a subjetividade fica paralisada em meio a um conflito psíquico o artista tem a arte para restabelecer com sua criatividade seus laços com o mundo.

5) A arte na clínica com crianças pequenas psicóticas e autistas - O espaço da convivência com pequenos no CAPSI em que vêm ocorrendo a entrada da arte ao qual vou me reportar é composta por três técnicos: eu, Benita Michahelles e Joana Dulcetti Vibranovski. Nele a arte vem se infiltrando lentamente e começou a ocorrer depois dele estar constituído. O autismo e a psicose infantil são adoecimentos psíquicos que apresentam ainda uma clínica incipiente. Durante a convivência procuramos nos deixar guiar pelas próprias crianças, não há uma fórmula pronta a qual possamos copiar. Em nossas reuniões de fim de turno fica claro que não traçamos soluções, mas um passo, até o próximo impasse. Acredito que nossa clínica não está só afinado com o Caso a Caso – modelo ‘anti-apriorístico’ da psicanálise – ela parece ser a do momento-a-momento, porque em um mesmo caso a direção encontrada sempre pode mudar. Há, no entanto, um ponto de partida do qual todas as intervenções que dirigimos às crianças respeitam: Consideramos que seus atos são atos significantes e que estes são produtos de sujeito. O que não significa dizer que sempre apoiamos suas ações, já que às vezes são fruto de um gozo do qual elas são escravas, que as domina.
Parecia um absurdo total oferecer às crianças completamente desorganizadas, sem fala, com movimentos repetitivos, materiais de artes. Porém, muitas se interessam e utilizam o material para realizarem suas incursões nas artes. Às vezes criamos com elas, às vezes secretariamos. Estamos atentos para nos mantermos firmes na difícil tarefa de não nos deixar levar pela conduta disciplinar. É preciso criar espaço para que o sujeito possa vir a se inventar. Acredito que a experiência tem sido bem sucedida muito porque a equipe que trabalha neste dia apresenta grande sintonia. Nossas reuniões são muito ricas em trocas.
Para testemunhar com a prática este relato da experiência da arte com autistas e psicóticos infantis, trago dois momentos do entrecruzamento da arte com a psicanálise no tratamento de duas crianças autistas.
O primeiro acontece com um menino de cinco anos que vou chamar de Isaías. Soube, através dos atendimentos individuais feitos a seus pais, que a mãe de Isaías não conseguia negar-lhe o seio. Para desmamá-lo ela teve que se valer de uma artimanha. Passou mercúrio cromo no peito e, mostrando-lhe, disse-lhe que estava machucada, razão pela qual não poderia lhe dar de mamar. Ao introduzirmos os materiais de artes na convivência, Isaías mostrou rapidamente predileção por uma atividade. O menino, com um pilot vermelho, rabisca as fotos das mulheres, e concentra seus riscos na região dos seios. Outra arte que Isaías gosta muito de fazer é recortar as figuras das revistas e depois colá-las remontando a revista. Outro dia pus-me a fazer uma colagem ao seu lado, e para isso tínhamos que compartilhar a mesma cola. Cada vez que eu pegava a cola Isaías reclamava muito, dava berros e pulos para que eu a devolvesse. Eu, por minha vez, calmamente avisava que depois de usar eu a devolveria. Isso se repetiu muitas vezes, porém, a cada vez ele ia berrando menos. Fui falando com ele, dizendo que ele podia acreditar em mim, que eu sabia que era difícil pra ele acreditar porque em sua casa o sim e o não eram confusos: “Eu quero te dar o peito, mas eu não posso”, aquilo era um não fingido de sim e ao mesmo tempo um sim que na verdade era um não. No fim não existia nem sim nem não. Quando ele ouviu a argumentação de que aqui era diferente, que ele podia acreditar no meu não e no meu sim, ele olhou, deu um largo sorriso e acenou um sim com a cabeça. Ao final pode acreditar que eu devolveria a cola, chegando a entregá-la na minha mão quando eu pedia.
O outro fragmento de caso clínico oferece um colorido que só a prática pode proporcionar. Aconteceu com um menino de 7 anos que vou chamar de Caíque. Seus pais vêm repetidamente falando sobre quererem que Caíque passe da turma especial de condutas típicas para a turma regular na escola. O menino já fez uma avaliação, por insistência deles junto à 7ª CRE e não foi considerado apto a mudar de turma. Porém os pais não se contentam e constantemente retornam ao assunto. Caíque fica muito inquieto com tudo isso. Seu pai comenta, em atendimento, que Caíque não foi aceito na turma regular porque não sabia escrever, que esta é a condição, estar alfabetizado. Neste dia, Caíque com uma vareta nas mãos fez riscos na areia. Perguntei se ele estava escrevendo e comentei que havia conversado com seu pai sobre a escola e sobre a avaliação pela qual passou. Caíque me olhou muito firmemente, se levantou, e começou a fazer sua arte. Ele ia até a mesa em que estavam as tintas, lambuzava a mão com determinada cor, saía da sala e marcava na parede do lado de fora, lavava a mão na torneira e voltava, escolhia outra cor e fazia o processo todo outra vez. Acabou ficando muito interessante, tanto que mantivemos a pintura na parede, ela sugere um caminho feito de mãos, tem muito movimento e cores variadas. Quando Caíque terminou sua ‘obra’, chamou a mãe para mostrar-lhe a escrita que ele havia criado ali.
O trabalho com arte com crianças autistas só pode ocorrer por que supomos sujeitos ali e, a esta suposição, eles respondem com suas criações. Procuramos, utilizando a arte, dar suporte para que seja possível algum encadeamento, uma ordenação lógica em seus significantes soltos. Oferecemos a possibilidade da arte servir como uma base, onde o inconsciente comece a se articular em discurso. As crianças autistas que chegaram para o tratamento sem recurso verbal hoje falam, algumas mais, outras menos.
A aplicabilidade da arte na clínica psicanalítica no cenário do tratamento psíquico atual ainda está se inaugurando. Apresentamos a hipótese de que a arte possa ajudar o sujeito a inventar uma forma de estabelecer seu contorno singular em torno do vazio. Sustentamos, a partir de nossa experiência clínica, a arte como um elemento que contribuí para que o paciente possa visitar sua fantasia (na neurose) ou construir um delírio e, na melhor das hipóteses, fazer suplência ao Nome do Pai (na psicose) ou ainda, para que o inconsciente comece a se articular em discurso (no autismo).
Certamente ainda sobrou muito para ser aprofundado. Estabelecer a clínica psicanalítica com arte é um desafio que pretendo continuar construindo com rigor teórico e dentro da ética da psicanálise. Acredito que esta pesquisa proporcionou que uma porta fosse aberta.












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[1] Mestranda da UERJ – Pesquisa e Clínica em Psicanálise, Psicanalista do CAPSI Eliza Santa Roza, Supervisora Clínica – Institucional da Clínica das Amendoeiras
[2] MELLO, L. C. – “Flores do abismo” in: Mostra do Descobrimento. Nelson A. (org) / Fundação Bienal de São Paulo – S.P. : Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000.
[3] A exposição: “Arte e Inconsciente: Três Visões sobre o Juqueri”, que ocorreu em Belo Horizonte em 18 de Agosto de 2003 no Instituto Moreira Salles, teve exposta esta carta de Freud ao médico Osório César, elogiando o seu trabalho “com a potencialidade de pacientes psiquiátricos”.
[4] Hoje o Hospital leva seu nome: Instituto Municipal Nise da Silveira.
[5] Figueiredo, A. C . – “Vastas confusões e atendimentos imperfeitos”, (1997)
[6] Freud, S. – “Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica” (1919[1918]) vol.XVII p. 210 e 211
[7] Expressão usada por Antonio Di Ciaccia, que foi sustentada conceitualmente por Jacques-Alain Miller Mantenho a expressão em francês por não haver consenso no Brasil sobre o melhor termo para designá-la, se prática feita por vários ou entre muitos.
[8] Antonio Di Ciaccia (dir.) La pratique a plusieurs em institution Publication du Champ Freudien em Belgique: Preliminaire; ACTES des Troisièmes Journées du Réseau International d’Institutions Infantiles. Bruxelles, 1-2 février 1997.
[9] Lacan, J. O seminário 23 - O Sinthoma CD Rom
[10] Esta idéia é apresentada por Freud nas “Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise” (1916-17 [1915-17]), “Formulações sobre os dois Princípios do Funcionamento Mental” (1911) e “Um Estudo Autobiográfico” (1925 [1924]).

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