quarta-feira, setembro 08, 2010

“A mudança de paradigma no enfrentamento do uso abusivo de drogas e suas conseqüências para o tratamento na perspectiva da psicanálise de crianças e adolescentes oferecido pelo CAPSij”

Resumo:
Esse trabalho trata da clínica de sujeitos em uso abusivo de drogas e da mudança de paradigma nas políticas públicas em relação a esse tema. Propõe que a droga pode assumir o lugar da Coisa (das Ding) fazendo com que o sujeito abdique de qualquer outro objeto por ela e que crianças em situação de rua, a partir de uma insuficiência da função paterna, acabam cedendo a um gozo desregrado.

Palavras Chave: droga – criança - tratamento

This paper reflects on the clinic of subjects in situation of drug abuse, and the paradigm shift in public policies in relation to this theme. We propose that drugs can take the place of The Thing (das Ding), leading the subject to abandon any other object; we suggest finally that homeless children, due to an insufficiency of the paternal role, eventually to succumb to enjoyment without rules.

Keywords: drugs- children - treatment

O tratamento de pessoas em uso abusivo de álcool e outras drogas no campo público da saúde mental vem se revelando um tema altamente complexo. A interseção entre o caráter político e a intervenção clínica além da freqüente necessidade de interlocução com diversos atores que compõe o enfrentamento dessa questão, dão notícias do quanto ainda temos que avançar.

O psicanalista que atua nessa área além de colaborar com sua escuta no caso a caso com seu manejo clínico e seu entendimento e/ou hipóteses sobre a toxomanía, precisa também estar atento para as discussões e posicionamentos na esfera mais ampla do debate das políticas públicas.

Atualmente percebemos na saúde pública mudanças na atenção e tratamento da pessoa em uso abusivo de álcool e outras drogas. Essas mudanças estão vinculadas a um movimento que foi ganhando lastro e construindo outras formas de entendimento que imprimiram uma mudança de paradigma no âmbito da política relativa às drogas no Brasil.

Até 1998 não havia no Brasil uma política específica na área da redução da demanda e da oferta de drogas, só então, como conseqüência a XX Assembléia Geral Especial das Nações Unidas é que foi criada a Secretaria Nacional Antidrogas (SEDAD). E, em dezembro desse mesmo ano foi realizado o I Fórum Nacional anti drogas para elaboração de uma política nessa área, tendo sido formalizada somente em 2001 no II Fórum e realmente instituída em 2002 pelo decreto 4.345.

Nesse primeiro momento, seguindo as orientações da Organização Mundial de Saúde, a posição governamental era de ataque as drogas, era totalmente anti-drogas. Não havia brechas para reflexão sobre o tema.

Dois anos depois, em 2004, começa a ocorrer um realinhamento da Política Nacional em relação à droga. O primeiro passo foi o “Seminário Internacional de Políticas públicas sobre drogas”, fomentando um debate entre vários países sobre os modelos de políticas públicas implantados, como o Canadá, a Itália, os Países Baixos, Portugal, Reino Unido, Suécia e Suíça e o Brasil para o intercâmbio de experiências. Esse seminário deflagrou o início de uma mudança de paradigma que está em processo até os dias de hoje.

No mesmo ano, de agosto a outubro foram realizados seis fóruns regionais em todo o Brasil que, devido à intersetoralidade do tema contaram com ampla participação de setores do governo e da sociedade civil para garantir a descentralização e democratização das políticas sobre drogas. Esses fóruns foram realizados em universidades para que a pluralidade e a democracia ficassem asseguradas.

Como conseqüência de toda essa mobilização, em novembro do mesmo ano foi realizado o Fórum Nacional sobre drogas. A utilização da palavra sobre substituindo a palavra anti, reflete a transformação da maneira como esse tema iria de agora em diante ser tratado.

A política nacional em relação às drogas foi totalmente reformulada e transformada na Lei 11.343/06. Entraram em cena aspectos de prevenção, atenção, tratamento e reinserção social; e a diferenças entre usuário, dependentes e traficantes.

Assim a questão das drogas foi deixando de ser um tabu e passando a figurar como tema de discussão nos meios acadêmicos, na saúde pública e na sociedade civil como um todo.

Começou a ser possível estabelecer diferença entre ser a favor da descriminalização e ser favorável a utilização da droga. A posição de que a droga esteja regulada pelo estado e não pelos traficantes começou a poder ser enunciada.

A OMS defendia há dez anos o lema “Por uma sociedade sem drogas”, que propunha um programa antidrogas apenas proibicionista. As ações que advieram dessa concepção tinham um custo altíssimo e se mostraram totalmente ineficazes. O foco concentrava-se em penalizar o usuário, tido como delinqüente, a quem não era oferecido nenhum tipo de tratamento e sim prisão, e na prisão tem drogas e tráfico. Com a publicação da PNAD (Política Nacional sobre Drogas) começa-se a tratar o usuário de álcool e outras drogas como alguém que precisa de tratamento e a criminalizar com maior rigor o traficante.

A violência no combate ao uso das drogas, quando destinada ao usuário, tem sido criticada como geradora de uma sociedade cada vez mais violenta.

Saber que o terrorismo, o tráfico de armas, as guerras e a violência urbana se nutrem desse mercado passou a ser um dado contra o proibicionismo, pois é o dinheiro ilegal que é desviado. O proibicionismo leva o dinheiro gerado pelo uso de drogas para o crime e a corrupção. Entretanto esse ponto ainda é muito difícil de combater, pois a ilegalidade das drogas faz funcionar uma máquina que gera altos lucros financeiros e políticos.

Outro aspecto desse tema que também está sendo mais abertamente discutido é o da relação da história da humanidade com as drogas. O seres humanos desde seus primórdios se utilizam de substâncias que promovem estados alterados da consciência. Na antiguidade, as drogas já eram utilizadas em cerimônias e rituais, para se obter prazer, diversão e experiências místicas. Esse dado, apesar de ter sido sempre escamoteado é de fácil verificação. Está evidente quando uma criança se balança, quando os jovens dançam, quando as pessoas buscam os parques de diversão e também nos rituais presentes em nossa sociedade, tanto nos religiosos quanto nas festas pagãs e desportivas. É em uma taça e com champanhe que o vencedor de uma corrida de carro comemora sua vitória, o carnaval e o réveillon são regados a álcool e até o sangue de cristo é o vinho.

A designação de licita para algumas drogas e ilícitas para outras não obedece a critérios científicos e nem tão pouco ao real agravo para a saúde. 10% da população mundial são dependentes do álcool e 3,7% das mortes estão relacionadas ao consumo de bebidas alcoólicas e, mesmo assim o álcool é considerado lícito. No Brasil o estudo realizado pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD 2001) estimou que 11,2% da população brasileira apresentavam dependência do álcool.

É crescente a idéia de que é possível um uso responsável das drogas. Hoje há uma tendência em se diferenciar o usuário do toxicômano. Do assujeitado pela droga ao do que faz uso recreativo ou responsável. No proibicionismo, mesmo o usuário que não é dependente, acaba ficando mais preso a droga. Ele gasta muita energia e tempo de sua vida em função de como conseguir droga sem ser preso. Sua vida acaba girando em torno disso.

Quando os que fazem uso dessas substâncias não conseguem manter sob controle seu ímpeto pelo prazer que ela causa, quando o uso de qualquer droga causa sofrimento psíquico é quando o tratamento pode e deve entra em cena. Essa relação doente com a droga não é caso para o sistema jurídico penal e sim para a saúde física e mental.

Se a droga em parte e em alguns momentos é uma resposta a uma insuportável dor de viver, de se relacionar com o mundo e com as frustrações impostas por ele, uma ajuda ao mal estar que a vida apresenta, se a droga serve para abrandar as dificuldades de se estabelecer relacionamentos afetivos verdadeiros nesse nosso mundo altamente competitivo, precisamos escutar em que intensidade e em que nível esse artifício esta sendo usado, o quanto está sendo necessário amortecer o impacto que vem de fora.

A psicanálise não se detém ao rótulo de toxicômano e busca pensar a relação do sujeito com a droga. A distinção entre o eu imaginário e o sujeito do inconsciente permite afirmar que o uso abusivo de drogas não instituí uma categoria subjetiva. A toxicomania não é efeito exclusivo de uma estrutura psíquica específica com a droga. Tanto o psicótico como o neurótico ou o perverso podem fazer uso abusivo de substâncias psicoativas. Essas considerações nos salvaguardam de cair na esparrela de uma abordagem apenas medicamentosa ou mesmo de ações pedagógicas, pois incluí o sujeito como personagem principal dessa trama.

O discurso do sujeito nos vai revelando seu modo de relação com a droga. Esse talvez seja um dos pontos mais delicados para o psicanalista: suportar ouvir essa relação. Uma dificuldade que remonta aquela mesma que Freud (1915) destacou como sendo uma das piores ciladas em que um analista pode cair, a do furor senandis. Um inimigo mortal à psicanálise, já que nela o intuito da cura se sobrepõe a qualquer outra preocupação. A tarefa de apontar a diferença fundamental entre o „desejo de curar‟ e a „direção da cura‟ deve ser sustentada pelos psicanalistas dentro das instituições públicas de saúde mental. Outro ponto desafio para a análise do sujeito que problematiza sua relação com a droga é que enquanto a droga fornecesse um acesso ao gozo, no tratamento psicanalítico o sujeito paga para se desfazer de gozo.

Viver é caminhar a procura da Coisa (das Ding), em direção à morte. Nesse caminho, o sujeito reencontra outros objetos, já que, em última instância, não existe o Objeto que suture sua falta originária. A Coisa é a falta comum em todos, o Objeto sempre perdido, o que resta a ser satisfeito, sempre. É na falta que a Coisa é reencontrada e remetida sempre à outra coisa.

Na „direção da cura‟ o analista, pode ou não atestar que já está sendo possível para aquele sujeito brincar de viver; ou melhor, saber que não há o „Objeto‟ que tampona a falta, mas que é possível criar alguns objetos que fazem vez dele. Isto é, menos desavisadamente, colocar alguma coisa no lugar de coisa alguma.

A clínica com sujeitos em uso abusivo de drogas tem mostrado que a droga acaba por assumir o lugar da Coisa, a funcionar tão sedutoramente ao sujeito que este abdica de qualquer outro objeto. Nada, nenhuma outra satisfação chega tão perto de ser a Coisa. Realmente, a droga pode ser um grande atalho em direção à morte.

Com a Política de Redução de Danos a partir de 1992 abre-se um campo na saúde pública em que a psicanálise pode comparecer. Em uma direção que não podemos chamar similar, mas que podemos apontá-la como congruente com a psicanálise, pois se distancia do julgamento moral, essa política está mudando os rumos das ações desenvolvidas pelo estado na direção do tratamento de pessoas com envolvimento com drogas.

É uma estratégia de abordagem que não visa à obrigatória remissão do uso da droga para que se estabeleça o tratamento. Os princípios da tolerância, do pragmatismo e da diversidade sustentam essa direção; a tolerância pela escolha do outro em usar drogas, desde que essa escolha individual não prejudique o coletivo; o pragmatismo em se ter a preservação da vida a cima da meta da abstinência, mesmo em situações quando esta for a mais indicada; o princípio da diversidade que indica que cada pessoa usa a droga de forma diferente e que a própria questão da droga pode ser enfocada de diversas maneiras, social, cultural, psicológico, biológico, jurídico, etc.

A política de redução de danos está se revelando mais eficaz, principalmente por estar na direção da promoção de saúde e de resgate de laços sociais. Entretanto é preciso manter a problematização do tema para que a franca oposição ao proibicioninsmo não acabe desembocando na indiferença e na naturalização do uso abusivo das drogas.

A droga na infância e na adolescência traz problemas adicionais. A criança e o adolescente ainda não têm formada a capacidade crítica e o discernimento para se posicionar quanto o uso ou não de drogas e seu uso pode comprometer sua estrutura orgânica e psíquica ainda em formação. Entretanto, a criminalização das drogas marca crianças e adolescentes ao serem tratados como marginais e criminosos quando ainda são muito novos, aos nove, dez, onze anos de idade.

As pesquisas ajudam a desfazer antigas e equivocadas afirmações: sabemos hoje que aproximadamente apenas uma entre cem pessoas que fazem uso da maconha passam a usar também a cocaína cotidianamente, que 92% dos jovens que fazem uso de substancias psicoativas não continuam na vida adulta com esse habito e ainda que o uso da maconha não significa diretamente fracasso escolar. Por outro lado, dados divulgados pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID 2004) alertam para o fato de que 72,5% das crianças e adolescentes em situação de rua que não mantém mais contato com a família fazem uso freqüente de drogas.

O menino de rua ganha essa denominação por não ser de um pai ou de uma mãe e sim de rua. Ele perdeu sua casa. A palavra casa é derivada da palavra casamento que reflete os valores de nossa cultura. Em casa temos um comportamento diferente do comportamento que temos na rua. Em casa há o privado, a proteção e certas regras sociais para o convívio com a família. Na rua, no fora, há o perigo, o fascínio dos prazeres proibidos, a liberdade e o risco.

Existem meninos que trabalham na rua, mas que voltam para suas casas. Esses têm o trabalho, mesmo que seja o de vender chicletes e outras coisas, como um mediador simbólico que os protegem do gozo desregrado que a rua apresenta. Mesmo assim, muitos acabam seduzidos pela rua, alguns por possuírem lares desestruturados que não representam para eles lugar de proteção e abrigo.

As crianças e adolescentes de modo geral não recebem de bom grado as regras do dia a dia. É difícil fazê-las aceitar e cumprir com as exigências sociais, mesmo as mais básicas como tomar banho, estudar, escovar os dentes, aceitar que naquele momento não será possível atender a seu pedido, etc. Entretanto é exatamente essa borda às suas demandas que vão proporcionar que ela possa vir a ser um sujeito desejante. No caso das crianças que escolhem morar na rua, podemos propor que houve uma insuficiência da função paterna e que elas acabaram cedendo ao gozo desregrado oferecido pala rua. As crianças de rua encarnam aqueles que vivem o ideal de poder gozar fora da lei, que não se assujeitam e que por isso ameaçam a sociedade que precisa detê-los.

Os apelidos que eles se nomeiam para serem reconhecidos no grupo oferecem uma nova identidade que os afasta de suas singularidades e os liberam da responsabilização por seus atos, isso é, eles cometem atos como se o próprio sujeito não estivesse conduzindo suas ações. Essas crianças parecem procurar a inscrição imaginária no laço social pelo crime. O discurso social, como reposta, destitui esses meninos do lugar de crianças e adolescentes e oferece a identidade de delinquente, ou então oscila em seu discurso entre o desígnio de carente e o de perigoso para essas crianças. A sexualidade também é vivida sem que haja um sujeito desejante. Meninos e meninas entregam seus corpos literalmente ao gozo do Outro, corpos sem borda. A utilização das drogas por essas crianças é então, muitas vezes, para amortecer os sofrimentos que a rua impõe.

É extremamente necessário fazer uma ressalva. Existe uma questão social premente que não pode ficar obliterada. Eles serem menores, oriundos de uma família desestruturada, deterem dificuldades cognitivas, etc... são efeitos da situação de injustiça social profunda a qual estão submetidos. E se nesse artigo tentamos traçar algumas hipóteses relativas a seus funcionamentos psicossociais, não as fazemos para destituir o poder público de sua responsabilidade com essa população extremamente carente.

Quando ouvimos “os meninos de rua” procuramos destacar o um que está perdido nessa identidade, escutar o modo singular com que cada um foi atravessado por essa experiência. Nos mantendo no firme propósito de nem julgá-los a partir de ideal social e nem condescendentemente justificá-los por sua condição social e sim de interrogar sua posição de sujeito frente aquilo que o determina.

A direção do tratamento, no entanto não pode seguir nenhuma aspiração de ideal social. A tentativa de inclusão a qualquer preço na direção da socialização ortopédica produz violência, tanto a violência subjetiva quanto a factual.

O risco e a coragem são estimulados socialmente e o adolescente vive intensamente os desafios. A necessidade de se afirmar faz parte da adolescência. É muito difícil, nessa etapa da vida, aceitar limites físicos e psíquicos e não raramente expõe-se a grandes perigos. Só lentamente se vai construindo que a noção de perigo, o medo e a fragilidade são vitais e altamente potencializadores.

Na puberdade o desejo sexual tem a marca da interdição, já que esta é uma época além do recalque. A discordância entre o sujeito, que surge como produto dividido do recalcamento, e o mundo das pulsões causam tensão para o adolescente. O pai apresenta-se falho e incapaz de mediar o encontro com o real da puberdade. Os jovens caminham então a procura de outras referências de identificação, ou seja, fazem o trajeto que vai do pai para o mundo social mais amplo, do pai à lei social, do pacto edípico ao pacto social. È o momento do luto dos pais infantis e da re-significação da relação com o corpo, da escolha de objeto e da posição sexual.

Nesse momento em que escolhas sintomáticas se precipitam, a organização criminosa apresenta uma sustentação possível através do oferecimento de um lugar na hierarquia do crime que pode se apresentar como resposta do sujeito ao encontro com o real da puberdade.

O traficante serve ao adolescente imaginariamente como aquele que detém o falo, permitindo que ele projete para essa posição sua expectativa de liberdade, coragem, independência e acesso aos bens de consumo, isto é a transposição ideal da passagem do mundo infantil para mundo adulto.

Entretanto, essa trajetória não favorece que o jovem consiga se libertar da posição de objeto, ao contrário disso, ele acaba sequestrado em uma servidão ao mestre do crime. As normas rígidas do tráfico não abrem espaço para o desejo. Ao mesmo tempo, também não é possível, através desse recurso sintomático a consolidação do laço social, já que o grupo criminoso não é sustentado por ideal coletivo ou de solidariedade e acaba por lançá-lo em uma exclusão do pacto da vida social.

A redução de danos no caso de crianças em uso abusivo de drogas é um assunto delicado. Crianças são menores de idade e por essa razão não deveriam ter contato com nenhum tipo de droga, nem lícita nem ilícita. Entretanto, nos fixar nessa regra ideal nos afasta da realidade: as crianças estão usando drogas e cada vez mais prematuramente. Trabalhamos na linha tênue de não cair na permissividade e nem tão pouco fechar os olhos e ouvidos para essa situação. Suportar ouvir o que as move para esse caminho é a parte que cabe ao analista. Além de escapar do furor senandi que nesse caso encarna uma presença dificílima de ser manejada clinicamente.

Na redução de danos trabalhamos uma aproximação, oferecendo não só a escuta, mas também um suporte básico, como lugar pra dormir, comida, banho, enfim, coisas simples, mas que a maioria deles não têm. Muitas vezes faltam motivos para que elas queiram que o futuro lhes chegue. Ouvi certa vez de uma criança a expressão da total inversão de valores em que vivemos. Durante seu atendimento ela me confidenciou que, ao contrário do que a maioria das pessoas costumam pensar, era o crack que a mantinha viva, que fumá-lo era o único prazer que ela tinha na vida. Essa dura afirmativa nos faz perceber que na rede pública não é possível centrar apenas na saúde o tratamento de crianças usuárias de drogas. Essa problemática só poderá ser trabalhada na intersetoralidade, com a participação da assistência social, da educação, do esporte e lazer etc. para que se forme uma rede de atenção, cuidado e tratamento.

O aumento da demanda por tratamento de crianças e adolescentes usuários de drogas está nos fazendo repensar os dispositivos oferecidos pelos CAPSij (Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil). A primeira questão que surgiu quando começamos a tratar dessa clientela foi: “Qual a parte que nos cabe desse latifúndio”, traduzindo, o perfil „usuário de droga‟ é suficiente para que uma criança ou adolescente seja incluído como paciente em um CAPSi? Há uma correspondência direta e intrínseca entre ser cliente da saúde mental e usar drogas? A resposta foi talhada nos critérios básicos que nos apoiamos: Atendemos universalmente a toda e qualquer criança e adolescente que esteja em sofrimento mental assim, não poderíamos excluir um usuário de drogas desse princípio. Por outro lado, o uso de drogas não determina automaticamente a utilização de um serviço da alta complexidade como o CAPS. Em alguns casos um ambulatório pode perfeitamente cuidar do caso e em outros talvez não seja necessário um tratamento no sentido rigoroso do termo. A inclusão ou não de um cliente para tratamento em um CAPS não se faz pelo diagnóstico e sim pela complexidade que o caso requer somada a problematização enunciada pelo sujeito.

Nesse campo de atenção à criança, identificamos a urgente necessidade de mudança no perfil dos abrigos destinados as crianças. A maioria dos que temos em funcionamento foram estruturados para uma outra clientela e não suportam a forma de existir dessas crianças, que além da fissura pela droga também apresentam um fissura pela rua. A denominação de evasão para as idas e vindas dessas crianças é totalmente inadequado e etnocêntrico. Essas crianças obedecem a uma lógica muito diferente da nossa, mesmo morando em uma mesma cidade pertencem a um universo muito diferente do nosso, com valores diferentes. Elas não têm a experiência de uma família burguesamente estruturada. Também em relação ao atendimento clínico é preciso suportar suas idas e vindas e suas idiossincrasias se quisermos sustentar o tratamento.

Estamos iniciando no CAPSI Eliza Santa Roza um dispositivo de tratamento novo: Um Ateliê Clínico que se utiliza do vídeo. Um espaço para a criação artística sob o olhar e escuta clínica que nos permite favorecer a multiplicidade de linguagens. Passamos a ter a arte do vídeo como um componente importante para a (re) construção do sujeito.

Nossa proposta não substitui e não se opõe a que se insiram os clientes em outros cursos e aulas na comunidade. Entretanto, o Ateliê é um dispositivo clínico, que possui uma escuta voltada mais para o trabalho psíquico do que para qualquer outro objetivo. É um tratamento, não é entretenimento, não é profissionalizante e nem gerador de renda. Embora possa ser tudo isso também se houver uma determinação clínica no caso a caso.

Atualmente, no Ateliê Clínico do Eliza Santa Roza estamos realizando um vídeo intitulado “O Muro”. Uma das imagens que ele revela é o de bolinhas de sabão pulando muro, ela foi idealizada e realizada por um cliente que é usuário de droga. Aprendemos com esse cliente que “pular muro” faz parte do cotidiano da vida desse menino. Ele pula muros pra fazer “ganhos” pra comprar drogas, ele pula o muro pra fugir de casa, do abrigo e da detenção para menores. Esse menino quebrou o pé ao pular um desses muros pela vida e apareceu no serviço com o pé engessado falando “meu pé estourou como bolinha de sabão”. Pular muro é transgredir regras, mas também é querer ir além, ter liberdade. Ser bolinha de sabão é ser frágil, mas também é poder voar. A arte talvez possa possibilitar um vôo onde o sujeito não se estatele, a arte é libertadora, nos tira do chão ao mesmo tempo em que é realizadora de sonhos.

O Ateliê é uma maneira nova que estamos oferecendo para que os clientes possam falar do que os faz sofrer e também uma nova maneira de nós escutarmos suas angustias. Tem dupla incidência, trabalha através da arte a subjetividade de seus criadores/autores/cineastas (clientes) e é prazeroso, podendo substituir outros prazeres menos benéficos.

Bibliografia

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