quarta-feira, setembro 08, 2010

“A mudança de paradigma no enfrentamento do uso abusivo de drogas e suas conseqüências para o tratamento na perspectiva da psicanálise de crianças e adolescentes oferecido pelo CAPSij”

Resumo:
Esse trabalho trata da clínica de sujeitos em uso abusivo de drogas e da mudança de paradigma nas políticas públicas em relação a esse tema. Propõe que a droga pode assumir o lugar da Coisa (das Ding) fazendo com que o sujeito abdique de qualquer outro objeto por ela e que crianças em situação de rua, a partir de uma insuficiência da função paterna, acabam cedendo a um gozo desregrado.

Palavras Chave: droga – criança - tratamento

This paper reflects on the clinic of subjects in situation of drug abuse, and the paradigm shift in public policies in relation to this theme. We propose that drugs can take the place of The Thing (das Ding), leading the subject to abandon any other object; we suggest finally that homeless children, due to an insufficiency of the paternal role, eventually to succumb to enjoyment without rules.

Keywords: drugs- children - treatment

O tratamento de pessoas em uso abusivo de álcool e outras drogas no campo público da saúde mental vem se revelando um tema altamente complexo. A interseção entre o caráter político e a intervenção clínica além da freqüente necessidade de interlocução com diversos atores que compõe o enfrentamento dessa questão, dão notícias do quanto ainda temos que avançar.

O psicanalista que atua nessa área além de colaborar com sua escuta no caso a caso com seu manejo clínico e seu entendimento e/ou hipóteses sobre a toxomanía, precisa também estar atento para as discussões e posicionamentos na esfera mais ampla do debate das políticas públicas.

Atualmente percebemos na saúde pública mudanças na atenção e tratamento da pessoa em uso abusivo de álcool e outras drogas. Essas mudanças estão vinculadas a um movimento que foi ganhando lastro e construindo outras formas de entendimento que imprimiram uma mudança de paradigma no âmbito da política relativa às drogas no Brasil.

Até 1998 não havia no Brasil uma política específica na área da redução da demanda e da oferta de drogas, só então, como conseqüência a XX Assembléia Geral Especial das Nações Unidas é que foi criada a Secretaria Nacional Antidrogas (SEDAD). E, em dezembro desse mesmo ano foi realizado o I Fórum Nacional anti drogas para elaboração de uma política nessa área, tendo sido formalizada somente em 2001 no II Fórum e realmente instituída em 2002 pelo decreto 4.345.

Nesse primeiro momento, seguindo as orientações da Organização Mundial de Saúde, a posição governamental era de ataque as drogas, era totalmente anti-drogas. Não havia brechas para reflexão sobre o tema.

Dois anos depois, em 2004, começa a ocorrer um realinhamento da Política Nacional em relação à droga. O primeiro passo foi o “Seminário Internacional de Políticas públicas sobre drogas”, fomentando um debate entre vários países sobre os modelos de políticas públicas implantados, como o Canadá, a Itália, os Países Baixos, Portugal, Reino Unido, Suécia e Suíça e o Brasil para o intercâmbio de experiências. Esse seminário deflagrou o início de uma mudança de paradigma que está em processo até os dias de hoje.

No mesmo ano, de agosto a outubro foram realizados seis fóruns regionais em todo o Brasil que, devido à intersetoralidade do tema contaram com ampla participação de setores do governo e da sociedade civil para garantir a descentralização e democratização das políticas sobre drogas. Esses fóruns foram realizados em universidades para que a pluralidade e a democracia ficassem asseguradas.

Como conseqüência de toda essa mobilização, em novembro do mesmo ano foi realizado o Fórum Nacional sobre drogas. A utilização da palavra sobre substituindo a palavra anti, reflete a transformação da maneira como esse tema iria de agora em diante ser tratado.

A política nacional em relação às drogas foi totalmente reformulada e transformada na Lei 11.343/06. Entraram em cena aspectos de prevenção, atenção, tratamento e reinserção social; e a diferenças entre usuário, dependentes e traficantes.

Assim a questão das drogas foi deixando de ser um tabu e passando a figurar como tema de discussão nos meios acadêmicos, na saúde pública e na sociedade civil como um todo.

Começou a ser possível estabelecer diferença entre ser a favor da descriminalização e ser favorável a utilização da droga. A posição de que a droga esteja regulada pelo estado e não pelos traficantes começou a poder ser enunciada.

A OMS defendia há dez anos o lema “Por uma sociedade sem drogas”, que propunha um programa antidrogas apenas proibicionista. As ações que advieram dessa concepção tinham um custo altíssimo e se mostraram totalmente ineficazes. O foco concentrava-se em penalizar o usuário, tido como delinqüente, a quem não era oferecido nenhum tipo de tratamento e sim prisão, e na prisão tem drogas e tráfico. Com a publicação da PNAD (Política Nacional sobre Drogas) começa-se a tratar o usuário de álcool e outras drogas como alguém que precisa de tratamento e a criminalizar com maior rigor o traficante.

A violência no combate ao uso das drogas, quando destinada ao usuário, tem sido criticada como geradora de uma sociedade cada vez mais violenta.

Saber que o terrorismo, o tráfico de armas, as guerras e a violência urbana se nutrem desse mercado passou a ser um dado contra o proibicionismo, pois é o dinheiro ilegal que é desviado. O proibicionismo leva o dinheiro gerado pelo uso de drogas para o crime e a corrupção. Entretanto esse ponto ainda é muito difícil de combater, pois a ilegalidade das drogas faz funcionar uma máquina que gera altos lucros financeiros e políticos.

Outro aspecto desse tema que também está sendo mais abertamente discutido é o da relação da história da humanidade com as drogas. O seres humanos desde seus primórdios se utilizam de substâncias que promovem estados alterados da consciência. Na antiguidade, as drogas já eram utilizadas em cerimônias e rituais, para se obter prazer, diversão e experiências místicas. Esse dado, apesar de ter sido sempre escamoteado é de fácil verificação. Está evidente quando uma criança se balança, quando os jovens dançam, quando as pessoas buscam os parques de diversão e também nos rituais presentes em nossa sociedade, tanto nos religiosos quanto nas festas pagãs e desportivas. É em uma taça e com champanhe que o vencedor de uma corrida de carro comemora sua vitória, o carnaval e o réveillon são regados a álcool e até o sangue de cristo é o vinho.

A designação de licita para algumas drogas e ilícitas para outras não obedece a critérios científicos e nem tão pouco ao real agravo para a saúde. 10% da população mundial são dependentes do álcool e 3,7% das mortes estão relacionadas ao consumo de bebidas alcoólicas e, mesmo assim o álcool é considerado lícito. No Brasil o estudo realizado pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD 2001) estimou que 11,2% da população brasileira apresentavam dependência do álcool.

É crescente a idéia de que é possível um uso responsável das drogas. Hoje há uma tendência em se diferenciar o usuário do toxicômano. Do assujeitado pela droga ao do que faz uso recreativo ou responsável. No proibicionismo, mesmo o usuário que não é dependente, acaba ficando mais preso a droga. Ele gasta muita energia e tempo de sua vida em função de como conseguir droga sem ser preso. Sua vida acaba girando em torno disso.

Quando os que fazem uso dessas substâncias não conseguem manter sob controle seu ímpeto pelo prazer que ela causa, quando o uso de qualquer droga causa sofrimento psíquico é quando o tratamento pode e deve entra em cena. Essa relação doente com a droga não é caso para o sistema jurídico penal e sim para a saúde física e mental.

Se a droga em parte e em alguns momentos é uma resposta a uma insuportável dor de viver, de se relacionar com o mundo e com as frustrações impostas por ele, uma ajuda ao mal estar que a vida apresenta, se a droga serve para abrandar as dificuldades de se estabelecer relacionamentos afetivos verdadeiros nesse nosso mundo altamente competitivo, precisamos escutar em que intensidade e em que nível esse artifício esta sendo usado, o quanto está sendo necessário amortecer o impacto que vem de fora.

A psicanálise não se detém ao rótulo de toxicômano e busca pensar a relação do sujeito com a droga. A distinção entre o eu imaginário e o sujeito do inconsciente permite afirmar que o uso abusivo de drogas não instituí uma categoria subjetiva. A toxicomania não é efeito exclusivo de uma estrutura psíquica específica com a droga. Tanto o psicótico como o neurótico ou o perverso podem fazer uso abusivo de substâncias psicoativas. Essas considerações nos salvaguardam de cair na esparrela de uma abordagem apenas medicamentosa ou mesmo de ações pedagógicas, pois incluí o sujeito como personagem principal dessa trama.

O discurso do sujeito nos vai revelando seu modo de relação com a droga. Esse talvez seja um dos pontos mais delicados para o psicanalista: suportar ouvir essa relação. Uma dificuldade que remonta aquela mesma que Freud (1915) destacou como sendo uma das piores ciladas em que um analista pode cair, a do furor senandis. Um inimigo mortal à psicanálise, já que nela o intuito da cura se sobrepõe a qualquer outra preocupação. A tarefa de apontar a diferença fundamental entre o „desejo de curar‟ e a „direção da cura‟ deve ser sustentada pelos psicanalistas dentro das instituições públicas de saúde mental. Outro ponto desafio para a análise do sujeito que problematiza sua relação com a droga é que enquanto a droga fornecesse um acesso ao gozo, no tratamento psicanalítico o sujeito paga para se desfazer de gozo.

Viver é caminhar a procura da Coisa (das Ding), em direção à morte. Nesse caminho, o sujeito reencontra outros objetos, já que, em última instância, não existe o Objeto que suture sua falta originária. A Coisa é a falta comum em todos, o Objeto sempre perdido, o que resta a ser satisfeito, sempre. É na falta que a Coisa é reencontrada e remetida sempre à outra coisa.

Na „direção da cura‟ o analista, pode ou não atestar que já está sendo possível para aquele sujeito brincar de viver; ou melhor, saber que não há o „Objeto‟ que tampona a falta, mas que é possível criar alguns objetos que fazem vez dele. Isto é, menos desavisadamente, colocar alguma coisa no lugar de coisa alguma.

A clínica com sujeitos em uso abusivo de drogas tem mostrado que a droga acaba por assumir o lugar da Coisa, a funcionar tão sedutoramente ao sujeito que este abdica de qualquer outro objeto. Nada, nenhuma outra satisfação chega tão perto de ser a Coisa. Realmente, a droga pode ser um grande atalho em direção à morte.

Com a Política de Redução de Danos a partir de 1992 abre-se um campo na saúde pública em que a psicanálise pode comparecer. Em uma direção que não podemos chamar similar, mas que podemos apontá-la como congruente com a psicanálise, pois se distancia do julgamento moral, essa política está mudando os rumos das ações desenvolvidas pelo estado na direção do tratamento de pessoas com envolvimento com drogas.

É uma estratégia de abordagem que não visa à obrigatória remissão do uso da droga para que se estabeleça o tratamento. Os princípios da tolerância, do pragmatismo e da diversidade sustentam essa direção; a tolerância pela escolha do outro em usar drogas, desde que essa escolha individual não prejudique o coletivo; o pragmatismo em se ter a preservação da vida a cima da meta da abstinência, mesmo em situações quando esta for a mais indicada; o princípio da diversidade que indica que cada pessoa usa a droga de forma diferente e que a própria questão da droga pode ser enfocada de diversas maneiras, social, cultural, psicológico, biológico, jurídico, etc.

A política de redução de danos está se revelando mais eficaz, principalmente por estar na direção da promoção de saúde e de resgate de laços sociais. Entretanto é preciso manter a problematização do tema para que a franca oposição ao proibicioninsmo não acabe desembocando na indiferença e na naturalização do uso abusivo das drogas.

A droga na infância e na adolescência traz problemas adicionais. A criança e o adolescente ainda não têm formada a capacidade crítica e o discernimento para se posicionar quanto o uso ou não de drogas e seu uso pode comprometer sua estrutura orgânica e psíquica ainda em formação. Entretanto, a criminalização das drogas marca crianças e adolescentes ao serem tratados como marginais e criminosos quando ainda são muito novos, aos nove, dez, onze anos de idade.

As pesquisas ajudam a desfazer antigas e equivocadas afirmações: sabemos hoje que aproximadamente apenas uma entre cem pessoas que fazem uso da maconha passam a usar também a cocaína cotidianamente, que 92% dos jovens que fazem uso de substancias psicoativas não continuam na vida adulta com esse habito e ainda que o uso da maconha não significa diretamente fracasso escolar. Por outro lado, dados divulgados pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID 2004) alertam para o fato de que 72,5% das crianças e adolescentes em situação de rua que não mantém mais contato com a família fazem uso freqüente de drogas.

O menino de rua ganha essa denominação por não ser de um pai ou de uma mãe e sim de rua. Ele perdeu sua casa. A palavra casa é derivada da palavra casamento que reflete os valores de nossa cultura. Em casa temos um comportamento diferente do comportamento que temos na rua. Em casa há o privado, a proteção e certas regras sociais para o convívio com a família. Na rua, no fora, há o perigo, o fascínio dos prazeres proibidos, a liberdade e o risco.

Existem meninos que trabalham na rua, mas que voltam para suas casas. Esses têm o trabalho, mesmo que seja o de vender chicletes e outras coisas, como um mediador simbólico que os protegem do gozo desregrado que a rua apresenta. Mesmo assim, muitos acabam seduzidos pela rua, alguns por possuírem lares desestruturados que não representam para eles lugar de proteção e abrigo.

As crianças e adolescentes de modo geral não recebem de bom grado as regras do dia a dia. É difícil fazê-las aceitar e cumprir com as exigências sociais, mesmo as mais básicas como tomar banho, estudar, escovar os dentes, aceitar que naquele momento não será possível atender a seu pedido, etc. Entretanto é exatamente essa borda às suas demandas que vão proporcionar que ela possa vir a ser um sujeito desejante. No caso das crianças que escolhem morar na rua, podemos propor que houve uma insuficiência da função paterna e que elas acabaram cedendo ao gozo desregrado oferecido pala rua. As crianças de rua encarnam aqueles que vivem o ideal de poder gozar fora da lei, que não se assujeitam e que por isso ameaçam a sociedade que precisa detê-los.

Os apelidos que eles se nomeiam para serem reconhecidos no grupo oferecem uma nova identidade que os afasta de suas singularidades e os liberam da responsabilização por seus atos, isso é, eles cometem atos como se o próprio sujeito não estivesse conduzindo suas ações. Essas crianças parecem procurar a inscrição imaginária no laço social pelo crime. O discurso social, como reposta, destitui esses meninos do lugar de crianças e adolescentes e oferece a identidade de delinquente, ou então oscila em seu discurso entre o desígnio de carente e o de perigoso para essas crianças. A sexualidade também é vivida sem que haja um sujeito desejante. Meninos e meninas entregam seus corpos literalmente ao gozo do Outro, corpos sem borda. A utilização das drogas por essas crianças é então, muitas vezes, para amortecer os sofrimentos que a rua impõe.

É extremamente necessário fazer uma ressalva. Existe uma questão social premente que não pode ficar obliterada. Eles serem menores, oriundos de uma família desestruturada, deterem dificuldades cognitivas, etc... são efeitos da situação de injustiça social profunda a qual estão submetidos. E se nesse artigo tentamos traçar algumas hipóteses relativas a seus funcionamentos psicossociais, não as fazemos para destituir o poder público de sua responsabilidade com essa população extremamente carente.

Quando ouvimos “os meninos de rua” procuramos destacar o um que está perdido nessa identidade, escutar o modo singular com que cada um foi atravessado por essa experiência. Nos mantendo no firme propósito de nem julgá-los a partir de ideal social e nem condescendentemente justificá-los por sua condição social e sim de interrogar sua posição de sujeito frente aquilo que o determina.

A direção do tratamento, no entanto não pode seguir nenhuma aspiração de ideal social. A tentativa de inclusão a qualquer preço na direção da socialização ortopédica produz violência, tanto a violência subjetiva quanto a factual.

O risco e a coragem são estimulados socialmente e o adolescente vive intensamente os desafios. A necessidade de se afirmar faz parte da adolescência. É muito difícil, nessa etapa da vida, aceitar limites físicos e psíquicos e não raramente expõe-se a grandes perigos. Só lentamente se vai construindo que a noção de perigo, o medo e a fragilidade são vitais e altamente potencializadores.

Na puberdade o desejo sexual tem a marca da interdição, já que esta é uma época além do recalque. A discordância entre o sujeito, que surge como produto dividido do recalcamento, e o mundo das pulsões causam tensão para o adolescente. O pai apresenta-se falho e incapaz de mediar o encontro com o real da puberdade. Os jovens caminham então a procura de outras referências de identificação, ou seja, fazem o trajeto que vai do pai para o mundo social mais amplo, do pai à lei social, do pacto edípico ao pacto social. È o momento do luto dos pais infantis e da re-significação da relação com o corpo, da escolha de objeto e da posição sexual.

Nesse momento em que escolhas sintomáticas se precipitam, a organização criminosa apresenta uma sustentação possível através do oferecimento de um lugar na hierarquia do crime que pode se apresentar como resposta do sujeito ao encontro com o real da puberdade.

O traficante serve ao adolescente imaginariamente como aquele que detém o falo, permitindo que ele projete para essa posição sua expectativa de liberdade, coragem, independência e acesso aos bens de consumo, isto é a transposição ideal da passagem do mundo infantil para mundo adulto.

Entretanto, essa trajetória não favorece que o jovem consiga se libertar da posição de objeto, ao contrário disso, ele acaba sequestrado em uma servidão ao mestre do crime. As normas rígidas do tráfico não abrem espaço para o desejo. Ao mesmo tempo, também não é possível, através desse recurso sintomático a consolidação do laço social, já que o grupo criminoso não é sustentado por ideal coletivo ou de solidariedade e acaba por lançá-lo em uma exclusão do pacto da vida social.

A redução de danos no caso de crianças em uso abusivo de drogas é um assunto delicado. Crianças são menores de idade e por essa razão não deveriam ter contato com nenhum tipo de droga, nem lícita nem ilícita. Entretanto, nos fixar nessa regra ideal nos afasta da realidade: as crianças estão usando drogas e cada vez mais prematuramente. Trabalhamos na linha tênue de não cair na permissividade e nem tão pouco fechar os olhos e ouvidos para essa situação. Suportar ouvir o que as move para esse caminho é a parte que cabe ao analista. Além de escapar do furor senandi que nesse caso encarna uma presença dificílima de ser manejada clinicamente.

Na redução de danos trabalhamos uma aproximação, oferecendo não só a escuta, mas também um suporte básico, como lugar pra dormir, comida, banho, enfim, coisas simples, mas que a maioria deles não têm. Muitas vezes faltam motivos para que elas queiram que o futuro lhes chegue. Ouvi certa vez de uma criança a expressão da total inversão de valores em que vivemos. Durante seu atendimento ela me confidenciou que, ao contrário do que a maioria das pessoas costumam pensar, era o crack que a mantinha viva, que fumá-lo era o único prazer que ela tinha na vida. Essa dura afirmativa nos faz perceber que na rede pública não é possível centrar apenas na saúde o tratamento de crianças usuárias de drogas. Essa problemática só poderá ser trabalhada na intersetoralidade, com a participação da assistência social, da educação, do esporte e lazer etc. para que se forme uma rede de atenção, cuidado e tratamento.

O aumento da demanda por tratamento de crianças e adolescentes usuários de drogas está nos fazendo repensar os dispositivos oferecidos pelos CAPSij (Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil). A primeira questão que surgiu quando começamos a tratar dessa clientela foi: “Qual a parte que nos cabe desse latifúndio”, traduzindo, o perfil „usuário de droga‟ é suficiente para que uma criança ou adolescente seja incluído como paciente em um CAPSi? Há uma correspondência direta e intrínseca entre ser cliente da saúde mental e usar drogas? A resposta foi talhada nos critérios básicos que nos apoiamos: Atendemos universalmente a toda e qualquer criança e adolescente que esteja em sofrimento mental assim, não poderíamos excluir um usuário de drogas desse princípio. Por outro lado, o uso de drogas não determina automaticamente a utilização de um serviço da alta complexidade como o CAPS. Em alguns casos um ambulatório pode perfeitamente cuidar do caso e em outros talvez não seja necessário um tratamento no sentido rigoroso do termo. A inclusão ou não de um cliente para tratamento em um CAPS não se faz pelo diagnóstico e sim pela complexidade que o caso requer somada a problematização enunciada pelo sujeito.

Nesse campo de atenção à criança, identificamos a urgente necessidade de mudança no perfil dos abrigos destinados as crianças. A maioria dos que temos em funcionamento foram estruturados para uma outra clientela e não suportam a forma de existir dessas crianças, que além da fissura pela droga também apresentam um fissura pela rua. A denominação de evasão para as idas e vindas dessas crianças é totalmente inadequado e etnocêntrico. Essas crianças obedecem a uma lógica muito diferente da nossa, mesmo morando em uma mesma cidade pertencem a um universo muito diferente do nosso, com valores diferentes. Elas não têm a experiência de uma família burguesamente estruturada. Também em relação ao atendimento clínico é preciso suportar suas idas e vindas e suas idiossincrasias se quisermos sustentar o tratamento.

Estamos iniciando no CAPSI Eliza Santa Roza um dispositivo de tratamento novo: Um Ateliê Clínico que se utiliza do vídeo. Um espaço para a criação artística sob o olhar e escuta clínica que nos permite favorecer a multiplicidade de linguagens. Passamos a ter a arte do vídeo como um componente importante para a (re) construção do sujeito.

Nossa proposta não substitui e não se opõe a que se insiram os clientes em outros cursos e aulas na comunidade. Entretanto, o Ateliê é um dispositivo clínico, que possui uma escuta voltada mais para o trabalho psíquico do que para qualquer outro objetivo. É um tratamento, não é entretenimento, não é profissionalizante e nem gerador de renda. Embora possa ser tudo isso também se houver uma determinação clínica no caso a caso.

Atualmente, no Ateliê Clínico do Eliza Santa Roza estamos realizando um vídeo intitulado “O Muro”. Uma das imagens que ele revela é o de bolinhas de sabão pulando muro, ela foi idealizada e realizada por um cliente que é usuário de droga. Aprendemos com esse cliente que “pular muro” faz parte do cotidiano da vida desse menino. Ele pula muros pra fazer “ganhos” pra comprar drogas, ele pula o muro pra fugir de casa, do abrigo e da detenção para menores. Esse menino quebrou o pé ao pular um desses muros pela vida e apareceu no serviço com o pé engessado falando “meu pé estourou como bolinha de sabão”. Pular muro é transgredir regras, mas também é querer ir além, ter liberdade. Ser bolinha de sabão é ser frágil, mas também é poder voar. A arte talvez possa possibilitar um vôo onde o sujeito não se estatele, a arte é libertadora, nos tira do chão ao mesmo tempo em que é realizadora de sonhos.

O Ateliê é uma maneira nova que estamos oferecendo para que os clientes possam falar do que os faz sofrer e também uma nova maneira de nós escutarmos suas angustias. Tem dupla incidência, trabalha através da arte a subjetividade de seus criadores/autores/cineastas (clientes) e é prazeroso, podendo substituir outros prazeres menos benéficos.

Bibliografia

AUTUORI, S - “A arte sinthomática na clínica das psicoses” in: Saber fazer com o real: diálogos entre Psicanálise e Arte. Lima, M.M. e Jorge, M.A.C. (orgs.). Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2009. PP. 255-264.
AUTUORI,S - Lacan e a Arte – Catando migalhas. (2005) Disponível em:
FREUD, S. – Observações sobre o amor de transferencial (Novas recomendações sobre a técnica da PsicanáliseIII) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. XII. Rio de Janeiro: Ed. Standard Brasileira. Imago. 1977.
LACAN, J. – O Seminário livro 23 – O Sinthoma (1975 – 76) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
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sexta-feira, maio 01, 2009

"Escritoes criativos e devaneios" Um pouco mais que uma resenha

O texto “Escritores criativos e devaneio” (1908 [1907])[1] é de rara importância para o tema arte e psicanálise por esta razão resolvi tecer alguns comentários e considerações.
Freud, no texto acima citado, se ocupa em pesquisar o processo criativo. Mais precisamente, ele quer entender o que determina ao escritor criativo sua escolha de material e os efeitos desta no leitor. O que o auxilia a talhar esta construção teórica é o desvelamento do fantasiar.
Calcado na afirmação dos próprios escritores, que eles não são tão diferentes da maioria das outras pessoas, constrói a hipótese de que o elo entre o artista e o homem comum está na atitude da criança ao brincar.
Freud compreende que o desejo que determina o brincar da criança é o de tornar-se adulto. Desejo que é regido pela ilusão de que o mundo adulto irá proporcionar a realização de suas fantasias. O artista, por sua vez, já não possui mais essa ilusão e, através da criação artística, empreende uma realização imaginária. A criança ao brincar se comporta como um artista que reedita a realidade da forma que melhor lhe agrada. Tanto um, quanto o outro, leva muito a sério essa brincadeira, investe muita emoção. Ao mesmo tempo sabem que tudo não passa de um acordo momentâneo de insanidade, a realidade está presente, mesmo que em suspenso.
Há, neste ponto do texto, uma afirmação, parente de muitas outras em Freud, que favorece aberturas fantásticas para o pensamento de quem as lê. Ele diz: “A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real[2]”. É possível, através desta afirmação, em conjunto com o corpo teórico do texto, realizar reflexões sobre o que parece estar sendo indicado: que a realidade não deve ser levada mais a sério do que a brincadeira, pois a brincadeira está vinculada à fantasia do sujeito e é uma interpretação da criança em relação a sua realidade. O brincar, como o sonho, é determinado por desejos inconscientes, ele é constituinte da realidade psíquica, nele estão presentes mecanismos como a figuração, a condensação, o deslocamento e o simbolismo. Porém, o brincar não é uma formação do inconsciente, nele a incidência da elaboração secundária é predominante, estabelecendo coerência e ordenação no seu conteúdo manifesto. Enfim, o que importa sublinhar, é a operação efetuada por Freud de distanciar o sério da realidade, aproximando da realidade psíquica a brincadeira banhada pela fantasia. Podemos, então, intuir que a discussão sobre a criação artística e o brincar em relação à realidade, obrigatoriamente, infiltra a questão da realidade psíquica.
Freud, realmente, neste texto, aproxima o ‘brincar’ infantil do ‘fantasiar’, estabelece que a única diferença é que, na brincadeira, a criança constitui conexões com coisas visíveis do mundo real.
Para sustentar sua hipótese, Freud lança mão da linguagem, recordando palavras alemãs. Nos conta que a palavra ‘Spiel‘ (peça) da nome às formas literárias que são necessariamente ligadas a objetos tangíveis e que podem ser representadas. Relata que as palavras ‘Lustspiel‘ ou ‘Trauerspiel‘ (comédia e tragédia) significam literalmente, ‘brincadeira prazerosa’ e ‘brincadeira lutuosa’ e que os atores são chamados de ‘Schauspieler’ que pode ser traduzido por ‘jogadores de espetáculo’.
Defendendo que é muito difícil abdicar-se de um prazer, Freud teoriza que em substituição da brincadeira, aparece, na adolescência, o devaneio que, como a brincadeira, é determinado por desejos. Porém, as fantasias motivadoras, por serem de cunho erótico-ambiciosos, são escondidas, veladas, sentidas como vergonhosas. Ficar a devanear não é bem aceito, é considerada uma ‘atitude infantil’, se espera de um adulto que ele possa se inserir e conquistar seu espaço no meio social.
Freud esclarece que tomou conhecimento da existência dos devaneios em sua clínica, ouvindo seus clientes, que por necessidade revelam “aquilo de que sofrem e aquilo que lhes dá felicidade[3]”. Esta é mais uma perola contida no texto, colocada displicentemente, da qual não posso deixar, ao menos um pouco, de me deter. O sintoma é dito como algo que produz sofrimento mas, ao mesmo tempo, ele causa um tipo de felicidade, um gozo. O que dá maior peso a essa afirmativa é o que vem a seguir. Freud nos conta que esses mesmos devaneios de seus pacientes estão presentes em pessoas saudáveis e, para arrematar, no parágrafo seguinte, estabelece a tese de que a pessoa feliz nunca fantasia, somente a insatisfeita. São muitos os canais abertos pelas articulações expostas. Porém, só para não deixar totalmente sem reflexão as idéias pelas quais sou tomada, minimamente gostaria de apontar duas ponderações que se apresentam como possibilidades: primeiramente e paradoxalmente a felicidade está relacionada ao gozo neurótico ou sintomático e a insatisfação incluída no que é saudável; em segundo lugar também percebemos que a fantasia comparece tanto no gozo sintomático quanto no que, ao mesmo tempo, revela o desejo do sujeito oriundo da insatisfação constituída por uma falta.
Volto a limitar-me ao texto mais estrito. Nele, Freud a partir da premissa de que as forças motivadoras da fantasia são os desejos insatisfeitos, estabelece que toda fantasia é a realização de um desejo. Assim, tanto os sonhos noturnos quanto os devaneios são realização de desejos.
Freud repete a fórmula, já utilizada no estudo de sonhos, para a compreensão da construção da fantasia e do devaneio, validando-a também para o processo de criação do escritor literário. A fórmula estipula que há três tempos neste trabalho mental – alguma ocasião motivadora no presente desperta um dos desejos principais do sujeito, que retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando um devaneio ou fantasia, podendo proporcionar em um artista a produção de uma obra literária. Freud, ao finalizar o caminho da criação, constrói uma das frases mais bonitas deste trabalho: “Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une[4]”.
No intuito de consolidar o vínculo proposto entre o devaneio e a criação literária, Freud estabelece uma distinção, separa os escritores que utilizam temas preexistentes daqueles que parecem criar o próprio material. Nos primeiros, através das criações mais populares, assemelha o herói – aquele que aparece protegido pela providência divina – à ‘sua majestade o ego’ tal como pode ser reconhecido nas fantasias. E defende que, mesmo nos romances menos ingênuos, como por exemplo os ‘excêntricos’e os ‘romances psicológicos’, as mesmas estruturas que sustentam a história, podem ser observadas nos devaneios. Freud prega uma proximidade entre o herói que os escritores gostam de criar, o herói que as crianças vivem em suas brincadeiras, e a atitude do espectador/leitor em catarse com esse herói.
Para os autores que trabalham em obras imaginativas que não são suas criações mas reformulação de material preexistente, Freud ressalta que, mesmo assim, o escritor conserva grande independência tanto na escolha do material quanto na alteração do mesmo. Chega a postular que os mitos possam ser “vestígios distorcidos de fantasias plenas de desejos de nações inteiras[5] .”
Para finalizar o enlace entre os devaneios e a literatura, Freud se põe a pensar de que modo as mesmas fantasias que causam repulsa podem, quando transformadas em obras de arte causarem tamanho prazer. Para esta questão ele propõe três vias: a primeira, já pincelada a cima, diz respeito à obra literária que, sendo ela irreal, possibilita que o leitor sinta o que é proibido na realidade; a segunda via é a capacidade que o escritor tem em suavizar o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, nos subornando com o prazer estético; a terceira via vem completar o que foi alinhavado nas duas ramificações anteriormente expostas, Freud propõe que, através do ‘prêmio de estímulo’ ou do ‘prazer preliminar’ – aquele conseguido pelo recurso formal utilizado pelo autor – ocorre a liberação de um prazer ainda maior, proveniente de fontes psíquicas mais profundas: as obras artísticas liberam o leitor/espectador para se deleitar com seus próprios devaneios, livre da culpa e da vergonha.
Freud encerra o texto reconhecendo que muito ainda resta a ser pensado sobre o processo artístico. Realmente, em seu percurso para criar uma nova ciência, retorna ao tema diversas vezes com diferentes enfoques. Por essa razão foi, por muitos autores, acusado de ser contraditório em relação à arte. Porém, talvez sua ambigüidade seja o reflexo de um pensamento dialético que se evidencia quando Freud combina arte com sua investigação teórica-clínica.
Este ponto de vista não tem como finalidade justificar ou buscar uma compreensão do pensamento freudiano dentro de uma perspectiva coerente, ao contrário, parece haver, em relação à arte, a necessidade de se suportar contradições.
O desfilar de ângulos de visão tão diferentes, contidos no decorrer da obra de Freud, parece mesmo apontar para que não há uma visão definitiva, não há uma verdade última que abarque o total desvelamento do que seja a arte. O que existem são pontos focais que surgem dependendo de como olhamos. Mesmo porque a arte não se deixa abocanhar por qualquer explicação, por isso mesmo, nem uma das formas de entendê-la, nem todas juntas, são definitivas.
Porém, o texto “Escritores criativos e devaneio” se mantém como referência para quem quer estudar as relações entre arte e psicanálise. Nele aparece uma das facetas principais do olhar do pai da psicanálise sobre a arte. Freud procura entender o mecanismo da fantasia a partir da ficção e, assim estabelece uma relação cardeal entre psicanálise e arte: o processo da criação aparece colocando em questão o funcionamento psíquico, as noções e compreensão do sujeito. Enfim, a arte é um foco de luz a iluminar os processos psíquicos para psicanálise.
[1] In Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Ed. Standard Brasileira, vol.IX Rio de Janeiro, Imago. 1976.
[2] Pág. 149
[3] Pág. 152.
[4] Pág. 153
[5] Pág 157

A Arte Sinthomática na Clínica das Psicoses.

Abstract
With the Lacanian formulations on Joyce’s writing, the way to treat psychoses has acquired a new perspective. In that regard, sinthomatic writing is presented as another possibility for constructing a replacement of the Name-of-the-Father, which is not thought of as delirium. It is a matter of the subject’s invention of its sinthom, its singular form of enjoyment (jouissance). Through this construction and on a scale lying within its possibilities, this invention is the inscription of its own name in the social sphere. Art in treating the psyche is not a new resource. Its first function was that of a non-traditional therapeutic approach escaping the violent methods used prior to the reform of psychiatry. Nonetheless, prior to blending artistic activity into the clinic with the theoretical and practical postulates of psychoanalysis, there had to be an extensive critical revision made of how to insert art into the psychiatrically reformed clinic. Art and psychoanalysis are two distinct and independent fields. Our study can be located in the intersection of these fields. The specific aim of this paper is to attempt the creation of a new plane in research and thought wherein art and psychoanalysis co-exist. Art in the psychoanalytic clinic has proved to be fertile ground for treating psychoses. It is an element enabling the subject to invent a form by which to establish its singular contour around the void.
Keywords: Art, Psychoanalytic Treatment, Psychosis, Sinthom

“A Arte Sinthomática na Clínica das Psicoses.”
Sandra Autuori[1]

A clínica com arte no Brasil tem Nise da Silveira como nome mais conhecido. Em seu atelier terapêutico no Hospital Psiquiátrico Pedro II, atual Instituto Nise da Silveira, em 1946 se contrapôs aos métodos de tratamento tradicionais como o ECT e a lobotomia[2]. Antes de Nise e reconhecido por ela como pioneiro, o psiquiatra Ozório Cesar no Juqueri em São Paulo, na década de 20 articulava produção de arte e loucura. Ozório reuniu em 1929 sua experiência no livro: Expressão artística dos alienados - Estudos dos Símbolos na Arte.
Devido à atribuição do valor artístico às obras de arte criadas pelos psicóticos, o que a princípio foi somente experimentação de um modo de tratar mais humano, tornou-se um dos argumentos mais contundentes pela ‘desestigmatização’ da loucura já que a arte é uma atividade humana de alto valor social.
Essas experiências contribuíram para que uma outra política de saúde mental fosse instaurada no Brasil. Podemos dizer que a direção na saúde mental pela desinstitucionalização teve como um dos seus precursores o trabalho desenvolvido com arte nos antigos manicômios.
Na atualidade a criação artística está presente em muitos serviços de Saúde Mental substitutivos e/ou alternativos ao manicômio. Principalmente aqueles que são direcionados à clientela mais grave. É um recurso que se mostra eficaz no sentido de oferecer certa estabilização psíquica e de facilitar reflexões.
O espaço em que tenho exercido a clínica com arte é o CAPSI Eliza Santa Roza, um serviço de saúde mental que trata de crianças e adolescentes autistas, psicóticos e neuróticos graves. A partir desse trabalho, fui construindo a hipótese de que a arte pode estar presente no tratamento psicanalítico. Apesar de existirem muitos artigos sobre a arte na clínica da loucura, na época não consegui encontrar nenhum que fizesse essa articulação no campo da psicanálise freudiana lacaniana.
Engajada na tarefa de pesquisar a arte na psicanálise, encontro um Lacan que ao ler Joyce percebe que a arte de sua escrita pôde lhe garantir uma estabilidade psíquica[3].
Para Lacan, a subjetividade se constitui entre o simbólico, o imaginário e o real. Ele se utiliza do nó borromeano, uma figura onde há um entrelaçamento de três elos, para demonstrar a existência de uma equivalência de importância entre os registros e ao mesmo tempo demonstrar que cada um deles possui propriedades distintas[4]. Lacan, posteriormente, apresenta a idéia de que um quarto laço venha realizar a função de manter o enlace entre os três registros. Esta hipótese é fundamentada no conceito freudiano do complexo do Édipo e recebe de Lacan o título de Nome-do-Pai.
Ocorre, porém que a constituição subjetiva não é estável, algo sempre falha. E o que sempre falha, pelo menos em parte, é o Nome-do-Pai. Os sintomas surgem como remendos na função paterna.
O caso das psicoses na teoria borromeana sofre um complicador a mais, pois esse adoecimento psíquico se caracteriza pela foraclusão do Nome-do-Pai. O que nos leva a considerar que na psicose, pela falta do Nome-do-Pai – laço que amarra os outros três elos, o simbólico, o imaginário e o real – a consistência do nó a três não pode ser mantida.
Entretanto, Joyce embaraça Lacan em uma nova perspectiva. No caso de Joyce o quarto elo não poderia ser o Nome-do-Pai. Nesse lugar, Joyce inventou, ou melhor, escreveu o que Lacan chamou de Sinthoma. Para além de simples retificações ou emendas, o Sinthoma é ele próprio o laço. E o Sinthoma em Joyce é sua peculiar escrita.
A arte pôde fazer suplência do Nome-do-Pai, funcionar como o elo que, de alguma maneira, manteve articulado os outros três registros. Ele acredita que Joyce pôde se salvaguardar de um surto ao utilizar a arte como barra à invasão no Simbólico pelo gozo do Outro, transformando este gozo em uma versão sua. Lacan acredita que também foi fundamental para o equilíbrio psíquico de Joyce a construção de um nome próprio que adveio do reconhecimento público de seu valor artístico.
A direção do tratamento das psicoses adquire, com estas formulações, uma nova perspectiva. Até então a única possibilidade para a psicose era a constituição de um delírio. A metáfora delirante era o recurso possível na psicose como suplência ao Nome-do-Pai.
A escrita sinthomática se apresenta como outra possibilidade de construção de suplência ao Nome-do-Pai que não passa pelo delírio. Qual seja: a invenção pelo sujeito de seu sinthoma, sua forma singular de gozo. E, através desta construção, em uma escala que lhe seja possível, a inscrição de seu nome próprio no social.
A arte no lugar do quarto Elo na teoria lacaniana vem responder ao incômodo de Lacan, exposto no seminário 7, de reclamar a ela um lugar maior do que a de ser uma professora do colegiado psicanalítico. Somos mesmo ‘catadores de migalhas...’ derramadas pela arte. A função de amarrar o simbólico, o imaginário e o real, proporcionando certo arranjo, mesmo que bastante singular, da subjetividade, não é pouco, é talvez o que nós analistas tanto almejamos quando tratamos de sujeitos psicóticos em profundo sofrimento mental.
Entretanto, para confeccionar a atividade artística na clínica com os postulados teórico-práticos da psicanálise foi preciso uma extensa revisão crítica de como a inserção da arte na clinica da reforma psiquiátrica é realizada. No campo da saúde mental, a maior parte das oficinas terapêuticas visa à atividade dirigida, onde a preocupação com o produto final se sobrepõe ao trabalho psíquico envolvido na ação.
O próprio conceito de arte foi deslocado da estrita posição de objeto resultado da produção artística, do objeto de arte valorizadas socialmente. Mesmo que alguns pacientes apresentem um talento artístico especial, não é essa a única e prioritária direção que caminhamos. Inclusive, pode não haver um objeto produzido ao final do trabalho.
Não existe nenhuma obrigatoriedade relativa à atividade, o que não significa dizer que não haja oferecimentos, porém, estes oferecimentos podem ser recusados, acrescidos ou mesmo trocados por outro.
A escolha ou oferecimento de determinada atividade tem a ver com o sujeito em questão. Este trabalho considera que não há incompatibilidade com a prática psicanalítica o oferecimento de algum material, desde que a razão que oriente o oferecimento esteja ancorada na clínica do sujeito em análise e não em uma demanda do analista.
Chamo atenção para o fato de que, em última instância, a criação artística aponta para o vazio, mas um vazio que põe em movimento a inventividade. A arte desencadeia (em todos os sentidos do termo) a criação. Pensamos a arte na clínica como um elemento que ajude o sujeito a inventar uma forma de estabelecer seu contorno singular em torno do vazio.
A prática clínica da arte com a psicanálise vem revelando diferentes maneiras de dessa articulação se estabelecer. Listo abaixo algumas que merecem atenção especial, como se fossem princípios. Elas estão separadas apenas didaticamente, muitas vezes há concomitância entre elas e formas diferentes no mesmo caso clínico. O modo como a arte se apresenta na clínica psicanalista obedece ao momento pelo qual passa o caso em questão.
1) A arte mediando o encontro – O trabalho artístico está presente mas não é o protagonista. A arte que está sendo criada serve neste caso como um atalho para que o trabalho psíquico opere. Um disfarce, algo que atrai e concentra a atenção do paciente, absorvendo seu “raciocínio”, ou melhor, sua atenção deliberada e libera-o para a fala. Esse modo da arte estar na clínica parece ter uma vantagem no que concerne aos impasses da transferência. A arte que medeia o encontro funciona como o ‘mais um’, algo que dilui a sensação de invasão muito severa na psicose e ajuda a barrar o Outro. O momento de criação pode permitir que se dê o laço analítico, ao fazer a pessoa que habita o analista desvanecer-se. O analista tem a arte como sua aliada em sua tarefa de dessubjetivação.

2) Interpretação da arte – Essa é uma possibilidade delicada. A arte interpretada pela psicanálise. Como a arte na clínica psicanalítica é passível de interpretação? Primeiramente é preciso estar atento para não cair na cilada de acreditar que em si mesma a obra vai construir uma ‘psicobiografia’ do paciente. Como se a arte, aliada a psicanálise, desvendasse o lado obscuro da mente humana. Não parece haver uma técnica ou um manual de interpretação da arte em psicanálise, com decifrações prévias a fala do sujeito e correspondências diretas entre a criação e significado. A interpretação da arte na clínica é, sem dúvida, um recurso que apresenta alguns riscos... Outro risco possível é a leitura realizada da obra estar contaminada pela vivência do próprio analista. Oferecer ao paciente esse tipo de interpretação é no mínimo selvagem. A arte ser uma obra aberta, e ter como a sede de significações o entre o espectador e o criador, favorece que isso aconteça. Por outro lado, esta mesma característica pode colaborar para que a transferência se dê e seja objeto de trabalho analítico. A obra criada não é sem vínculo com o analista presente no setting, não se pode ‘sair da reta’ da transferência.
Outro ponto a ser destacado é referente à qualidade da interpretação. Se ela for dada, tendo como direção a descoberta de um significado, mesmo que o significado tenha sido construído a partir da fala do sujeito e, mesmo que seja um significado novo, a interpretação da arte poderá até ser um ato de mestre, mas jamais um ato psicanalítico. A intervenção psicanalítica ocorre como a indicação de um possível sentido, dentre outros, um sentido como direção, não um significado. Sempre resta algo de não dito que alimenta o deslizamento dos significantes.
Em última instância talvez seja mais interessante dar ênfase não só ao que foi criado mas, principalmente em que haja criação.

3) Intervenção na arte – Vamos partir para essa possibilidade do ponto em que já chegamos após a análise da interpretação da arte. Isso é, mantemos a mesma posição relativa ao sentido e a transferência na clínica psicanalítica. Entretanto, nesse novo modo o analista participa da criação. Esta intervenção se assemelha à intervenção na brincadeira da análise com crianças. Na psicanálise com crianças, muitas vezes, ao invés de interpretar uma brincadeira, nós intervimos na brincadeira, brincamos com a criança sabendo que o que estamos fazendo é coisa muito séria. Na psicanálise com arte podemos intervir participando na arte que está sendo criada. O momento deste tipo de intervenção é ditado pela clínica do sujeito. É um movimento delicado e ariscado do analista. Geralmente ocorre com pacientes que já estão a mais tempo em tratamento e, mesmo assim não é um recurso que possa ser utilizado em larga escala. Entretanto, quando a intervenção na arte ocorre na transferência e aliada a história do sujeito ela pode, promover um exercício de deslocamento da posição subjetiva.
É uma intervenção que trabalha na possibilidade de ruptura, da entrada do novo. Colocamos elementos, mudamos uma ordenação repetitiva, adicionamos algum tipo de novidade, de surpresa ou diferença no que esta sendo produzido. Temos notado que as transformações produzidas nas artes tem se refletido no comportamento dos pacientes. Como se eles aprendessem que também é possível criar várias outras formas de estar no mundo.

4)A arte como analista
A clínica com a arte tem nos mostrado que há momentos em que os pacientes parecem estar realizando algum tipo de ‘elaboração’ enquanto criam, da qual nós analistas não tomamos parte e, muitas vezes, ocorrem melhoras independentes de nossas intervenções, só por deixá-los criar. Este acontecimento faz lembrar um ponto importante na trajetória de uma análise: o “saber fazer com seu sintoma”, que desemboca na construção do sinthoma, que Lacan nos aponta como o final de uma análise.
Parece ser, a partir da possibilidade deste modo de relação entre o paciente e a arte – neste encontro onde o analista é dispensável – que podemos compreender o fato de que muitos loucos artistas atingem algum tipo de estabilização ou equilíbrio só por criarem. A arte parece fazer a vez de analista, assumir o mesmo lugar vazio do analista.
Talvez seja essa a explicação para haverem tantas “oficinas de arte” em lugares de tratamento da loucura, oficinas que efetivamente alcançam melhoras em seus pacientes sem que haja muitas vezes nenhum analista por perto.
Podemos lembrar aqui Joyce e seu saber-fazer com seu sintoma. Ele o transformou em um traço de singularidade, de criação, e assim o fez alcançar o estatuto de sinthoma. Ao construir uma suplência capaz de sustentar o entrelaçamento do nó, produziu uma estrutura subjetiva muito diferente da habitual, porém suficiente para que pudesse viver no meio social sem entrar em surto.
Também podemos nos recordar de Freud, quando propunha a arte como a possibilidade de se estabelecer um caminho de volta a uma realidade de um novo tipo[5]. Quando a subjetividade fica paralisada em meio a um conflito psíquico, o artista tem a arte para restabelecer com sua criatividade seus laços com o mundo.

Para terminar, uma última consideração. A arte e a psicanálise são dois campos distintos e independentes. A psicanálise tem procurado aprender com a arte e também tentado lê-la através de seus preceitos. A arte, que tem em comum com a psicanálise o interesse pela alma humana, muitas vezes se serve da psicanálise em suas criações. O lugar em que se localiza esse trabalho é o da interseção desses dois campos, buscando criar novo ponto de pesquisa e pensamento, onde a arte e a psicanálise convivam. A clínica psicanalítica com arte têm se mostrado lugar fértil para o tratamento das psicoses.

[1] Mestra em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ. Dissertação: Clínica com arte: contribuições da arte na psicanálise. Supervisora Clínica-Institucional da Clínica Psiquiátrica Amendoeiras. Psicanalista do CAPSij Eliza Santa Roza. Servidora pública. Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro - SMS RJ.
[2] Mello, L. C. – “Flores do abismo” in: Mostra do Descobrimento. Nelson A. (org) / Fundação Bienal de São Paulo – S.P. : Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000.
[3] Lacan, J. O Seminário livro 23 – O Sinthoma (1975 – 76)
[4] Lacan, J. O Seminário livro 22 – R.S.I.. (1974 – 75).
[5] Esta idéia é apresentada por Freud nas “Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise” (1916-17 [1915-17]), “Formulações sobre os dois Princípios do Funcionamento Mental” (1911) e “Um Estudo Autobiográfico” (1925 [1924]).

domingo, abril 19, 2009

Sexualidade no Manicômio

Sexualidade no manicômio”[1]
Sandra Autuori[2]

Na primeira vez que entramos naquele lugar nossos sentidos foram invadidos pelo horror. Os olhos queriam se fechar para não ver os corpos desnudos, marcados por ferimentos, andando sem direção ou realizando movimentos repetidos, babas, cimento, ausência de cores. Os ouvidos queriam ser tapados para não escutarem os gritos e sons que não se assemelhavam a falas. Nossos narizes queriam não sentir o odor fétido dos excrementos humanos. No corpo o toque daqueles corpos se fazia sentir como um soco no estomago e a palavra “insuportável” queria escapar pela boca. Este momento quase rendeu todos os argumentos que havíamos construído. A idéia de que trabalhar em um hospital psiquiátrico era politicamente incorreto ficou bastante tentadora. Sim, “explodir com este tipo de instituição” era a melhor alternativa.
No Brasil, o fim dos anos 70 é marcado pelo término da ilusão do milagre econômico. Cai a máscara da falsa perspectiva de desenvolvimento econômico que vinha sendo apregoada pelo governo militar revelando a verdadeira face do Brasil. Não é mais possível esconder a deterioração das condições de vida da população brasileira. A crise político – econômica do governo Geisel força o início da retomada da democracia. O campo da saúde mental também é afetado. Por um lado a previdência social entra em colapso, provocado pela busca desenfreada por lucro dos empresários da loucura; por outro a abertura política põe a mostra o que até então estava guardado dentro dos muros do hospício. Pôde-se ver então a situação em que se encontravam e o tratamento dispensado ao louco. A herança dos anos 60.
O ponto em que se localiza o início da Reforma Psiquiátrica no Brasil é o da crise na Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam), ocorrida em 1978 na cidade do Rio de Janeiro, que colocou em debate a assistência presente nos hospitais psiquiátricos públicos. Divulgadas pelos trabalhadores de saúde mental, vêem a público denúncias da situação trágica em que se encontravam os hospitais psiquiátricos, os relatos de violências contra internos e os altos lucros concedidos ao setor privado.
Como fruto da luta política travada e também ajudados pela reconstrução democrática no país, em meados dos anos 80 participantes do MTSM (Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental) passam a participar de postos de chefia dentro do governo, em hospitais e universidades. O Movimento já não se restringe às bandeiras de luta iniciais de reivindicações por melhores condições de trabalho e pela humanização da assistência. A reforma psiquiátrica agora está orientada pelos princípios da destigmatização da loucura, a tomada da responsabilidade, a desmedicalização, o rompimento com a lógica manicomial/hospitalar, enfim a luta pela desinstitucionalização.
Mais do que desospitalizar, desinstitucionalizar visa quebrar com a lógica manicomial/hospitalar. Formar uma rede de serviços substitutivos e alternativos ao manicômio para a gradual e respectiva diminuição dos hospitais psiquiátricos. Entre os anos de 2003 e 2006 foram reduzidos 11.826 leitos. Entretanto, ainda restam no Brasil segundo o relatório de gestão 2003-2006 do Ministério da Saúde, 39.567 leitos em 226 hospitais psiquiátricos.
A população que ainda está internada nessas clínicas constitui um núcleo extremamente árido. Um mapeamento na clínica psiquiátrica em que trabalho revelou grande diversidade. Pacientes que apresentam concomitância com enfermidades orgânicas, autistas, retardo (sindrômico ou não), psicóticos, neuróticos graves, pacientes que foram acometidos pela psicose quando eram crianças (psicose infantil) e ainda alguns que não apresentam nenhum problema mental grave.
Os diversos “diagnósticos” têm em comum o fato de estarem em uma das três categorias de exclusão: (1) total abandono (nenhum familiar encontrável), (2) familiares social e ou psiquicamente mais comprometidos que os próprios pacientes, e (3) familiares que não se dispõem a morar com o paciente ou por ausência de vínculo afetivo ou outra indisposição qualquer.
No Rio de Janeiro só existe uma Residência Terapêutica onde moram pacientes que necessitam de média complexidade (cuidadores 24 hs) e nenhuma de alta complexidade. A maioria das Residências Terapêuticas (que ainda são em número bastante aquém das necessidades) é de baixa complexidade, para pacientes autônomos em suas rotinas diárias.
No Brasil trabalhamos também com a grave constatação de que a transformação do manicômio em mau negócio, não rentável, com a baixa remuneração para as internações psiquiátricas não ficou submetida à construção da rede substitutiva. Assim, a miseralização do manicômio acabou por penalizar os pacientes que sofrem com essa medida tão ou mais do que os donos.
O hospital psiquiátrico parece ser uma fábrica de desafios e a psicanálise em sua vocação de não fugir dos desafios clínicos se coloca disponível ao “intratável”, ao “insuportável”. Aliás, a psicanálise foi talhada, em sua origem, no preceito de tratar o que não tinha tratamento, na época as histéricas. Histéricas que com seu mal localizado em um corpo não acessível à medicina já denunciavam o corpo sexual.
A sexualidade humana na teoria freudiana não pertence à biologia e não é regida igualmente pela mesma lei natural das outras espécies animais. Não há o instinto com sua programação geneticamente pré estabelecida. Não há objeto adequado. Foi necessária a construção do conceito de pulsão para nomear o que especifica a humanidade e permitir a elaboração teórica de suas vicissitudes, tão singular nessa espécie. A sexuação é então o caminho que o sujeito traça ao construir sua singular posição sexual. O motor, ou melhor, o combustível que o impele é a não inscrição da diferença sexual no inconsciente. O sujeito terá que atravessar a castração. O sujeito não nasce, não se desenvolve, o sujeito se constituí.
Voltemos ao manicômio. O foco deste trabalho não está, prioritariamente, nos conflitos psíquicos dos asilados e seus possíveis efeitos em sua sexualidade. Isso seria um abuso. Seria dar as mãos para a crença de que a manifestação da sexualidade do louco internado é uma disfunção do seu corpo ou um processo patológico que o diferenciaria do padrão de normalidade. Seria tratar a expressão de seu desejo sexual como mero sintoma de uma enfermidade psíquica.
A Instituição responde a atividade sexual de seus pacientes de forma bastante determinada. Inicia com operações discursivas menos violentas, diálogos para convencer que o sexo não deve ser realizado nas dependências do hospital, se o “diálogo” (monologo) não é eficaz existem as medidas disciplinares, contenção física e medicamentosa. Os psicofarmacos que tem ação “dessexualizante” são muito utilizados para evitar a violência explícita, cala-se o sujeito sem se sujar as mãos. O preço, porém, para o paciente é muito alto. O remédio quando usado em quantidade inadequada pode impedir, na paranóia, a construção narrativa do delírio, e uma possível estabilização psíquica. O sintoma extirpado não deixa pista nem sinal para a escuta da subjetividade.
Deve haver outro caminho que não o da patologização da expressão sexual do interno para sua compreensão.
Dirijo a atenção para A Instituição psiquiátrica, já que o que há de comum a pacientes tão diversos é estarem institucionalizados.
Na clínica psiquiátrica há um saber constituído sobre o funcionamento mental que se mostra bastante impermeável. Um saber que é uma mistura do saber médico tradicional organicista, com uma psicologização travestida de especialismo e uma boa dose de tratamento pedagógico. Algo que poderia lembrar o tratamento moral na pior vertente desse modelo
Uma instituição funciona como uma engrenagem aonde se estabelece rotinas que se repetem sem que haja nenhuma problematização. As práticas exercidas sustentam a idéia de que não há muito que se fazer, tudo que foge a rotina é visto como o que tem que ser abolido. Há um ambiente de morte, pois a ausência de novidade é a melhor notícia, podemos ler nos prontuários: “Sem intercorrências, paciente calmo e cooperativo”. As “condutas” fazem lembrar a cena do filme “Tempos Modernos” de Charles Chaplin, em que Carlitos, operário em uma fábrica, aperta parafusos. O tempo é todo ocupado com as rotinas diárias, não sobrando tempo para mais nada. Parece uma linha de montagem. Quebrar essa máquina, fazer a engrenagem parar de girar ou fazê-la girar na direção oposta a qual a inércia a mantém girando é um objetivo principal de uma atuação/intervenção institucional.
O manicômio é uma instituição total, assim nomeada por Goffman, que tutela o louco regulando sua vida e seu destino. Violenta o paciente com seu excesso e o reduz a condição de objeto. Com o esvaziamento de sua subjetividade, sua humanidade se reduz a um corpo, que suportará processos disciplinares que visam o reconstruir não como sujeito e sim como indivíduo.
Por outro lado, com o asilamento há o rompimento radical dos laços sociais. Sabemos que a dimensão social é essencial à constituição do sujeito do inconsciente. Sem a entrada na ordem social a partir da família ou substitutos não é possível se tornar humano, a humanização não é uma atribuição natural da espécie.
Dentro do manicômio o interno é considerado como desprovido de valor contratual. O manicômio é nomeado por Basaglia como lugar de troca zero. Mesmo quando não há violência física de contenção ou medicamentosa, o próprio cuidado é invasivo. As rotinas diárias com suas práticas que sustentam a lógica hospitalar desconhecem qualquer singularidade, transmutando o sujeito em corpo doente a ser cuidado. Mesmo na versão humanizada do manicômio o que se pode encontrar, na melhor das hipóteses, são ações que se ancoram no saber sobre o que é melhor para o paciente. Violência velada, poder disciplinar travestido de boas intenções.
O corpo patológico é também nomeado de doente mental e é objeto da psiquiatria. É um resíduo do processo de destituição simbólica revestido pela linguagem médico-psicológica. Para que se estabeleça uma dinâmica na economia simbólica da instituição psiquiátrica asilar é fundamental a existência do corpo anátomo-patológico. É necessária a representação do corpo doente no imaginário do manicômio, para legitimar o tratamento mental com suas medidas disciplinares de gratificação ou punição ordenadoras do comportamento e a medicalização quase sempre em quantidade superior a necessária. Há um corpo a ser curado que justifica todo o trabalho de destituição subjetiva, e a cura é sinônimo de domesticalização.
Porém, o corpo ainda pulsa... Resiste, e onde há resistência há sujeito. O objeto que resta também para o interno é seu próprio corpo, e é dele que ele faz uso. Para fugir da sua mortificação subjetiva (efeito da instituição total) o sujeito exercita sua sexualidade. Sua resistência a ser domesticado nesse âmbito parece querer mostrar quem é o dono do corpo afinal. A psiquiatria se refere ao comportamento sexual dos internos como sendo inadequado. Inadequado é restringir o sujeito no ponto mesmo que o faz sujeito e querer que ele a isso não responda.
O hospital psiquiátrico por ser uma instituição total de tutela do louco, uma máquina com rotinas diárias de linha de montagem e medicalização, que trabalha no excesso, que destitui toda subjetividade e promove o rompimento radical dos laços sociais, por ser o lugar da troca zero é totalmente inadequado para um tratamento psíquico, é iatrogênico.
A sexuação, como vimos, é a dimensão essencial do sujeito e o asilado é destituído de sua sexualidade. Sua insubordinação, sua insistência na prática transgressora, às vezes violenta, rebelde, às vezes escondida, cada qual com seu estilo, têm a intenção da restauração do lugar de sujeito, mesmo que por um breve momento. Através do sexo ele insiste como sujeito.
A instituição psiquiátrica total, dona do destino do paciente, que o trata apenas como um corpo de necessidades, que opera no excesso, parece funcionar como o grande Outro não barrado que invade o sujeito com seu desejo que é uma ordem. A atividade sexual insiste, mesmo quando a instituição usa todo o seu poder para impedi-la. Ela é uma reação a subtração do sujeito. E ele insiste no ponto mesmo onde pode se constituir, marcando a humanidade de seu corpo sexuado.

Referências Bibliográficas
AMARANTE, P. – Loucos pela Vida: A trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Panorama/ ENSP, 1995.

AUTUORI, S – Clínica com Arte: Considerações sobre a Arte na Psicanálise. Dissertação de mestrado. UERJ – 2005.

BASAGLIA, F – A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Edições Graal. Rio de Janeiro, 1985.

BIRMAN, J – Sexualidade na Instituição Asilar. Edições Achiamé Ltda. Rio de Janeiro, 1980.

ELIA, L. – O Conceito de sujeito. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2004.

FOUCAULT, M. – Dits et écrits 1954-1988 II 1970-1975. Éditions Gallimard. Paris,1994.

______________ - História da sexualidade I: A vontade de saber. Edições Graal. Rio de Janeiro 1988.

______________ - História da loucura na Idade Clássica. Editora Perspectiva S.A. São Paulo, 1978.

FREUD, S. “O Mal estar na civilização” (1930), vol. XXI In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Ed. Standard Brasileira. Imago.

LACAN, J. – De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1998.

_________. O seminário, livro 3: As psicoses. (1955-56). Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1988.
[1] Apresentado no Simpósio da Intersecção Psicanalítica do Brasil no Rio de Janeiro em Setembro de 2007. Texto publicado no livro “As Identificações e a Identificação Sexual”, Mourão, A. & Lima, Nogueira M. (org.), Rio de Janeiro: Campo Matêmico, Companhia de Freud.
[2] A autora é mestre em psicanálise pela UERJ, supervisora clínica-institucional da Clínica Psiquiátrica das Amendoeiras, membro da equipe da unidade de serviço de saúde mental municipal CAPSij (Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil) Eliza Santa Roza.

sábado, julho 08, 2006

"O Brincar como uma especificidade da clínica com crianças”

Destacar o brincar como uma das condições específicas no trabalho com crianças é conferir importância ao método que deu origem à psicanálise com crianças.
A psicanálise de crianças deve sua existência à introdução do método lúdico, através do qual Melanie Klein ampliou o campo da psicanálise à criança.
Nos primórdios da psicanálise com crianças houve entre Anna Freud e Melanie Klein uma batalha teórica. Anna Freud considerava que as crianças, não tinham maturação psíquica para fazer psicanálise, acreditava, inclusive, que sua prática poderia ser maléfica, pois através de seu poder de remover o recalque, a psicanálise poderia fortalecer tendências impulsivas e negativas. No livro “O tratamento psicanalítico de crianças” (1926) Anna Freud defendeu a inaplicabilidade da psicanálise às crianças, utilizando o argumento que os pais ainda existem como objetos de amor na realidade e não na fantasia, e que essa ligação dificulta a transferência com o psicanalista. Para Anna Freud restava ao analista de crianças adotar uma postura pedagógica, orientadora, ganhando a confiança da criança para conduzi-la ao bom caminho da sublimação dos impulsos sexuais.
Na tentativa de viabilizar a psicanálise de crianças Melanie Klein estabeleceu que a diferença entre a psicanálise de crianças e a psicanálise de adultos está no método e não em seus princípios básicos. Klein propõe uma equivalência entre associação livre e o jogo lúdico, considerando-o como um campo transferencial fértil ao trabalho analítico.
A discordância entre as duas teóricas teve fim com o recuo de Anna Freud que abriu mão da orientação pedagógica ao admitir sinais de transferência na análise com crianças, reconhecendo que os princípios básicos da psicanálise poderiam ser estendidos à infância.
Em 1980, no auge do pensamento lacaniano no Brasil, a psicanálise com crianças foi posta a prova. Para Lacan a criança é um ser analisável, já que é um sujeito, com pelo menos uma promessa de estrutura. Porém, o jogo, o brincar, especificidades desta clínica, não é considerado substituto das associações livres. Houve então um descompasso na clínica com crianças, enquanto alguns tenderam a substituir o discurso da criança pelo uso do brinquedo, outros, em oposição radical a essa prática, direcionaram seu interesse apenas para expressões verbalizadas das crianças e negligenciaram o brincar.
Segundo Elza Santa Roza, a experiência psicanalítica com a criança acontece numa articulação do brincar com a verbalização. Ela conceitua o fenômeno lúdico situando-o no campo da linguagem. Considera que as crianças, mesmo não sendo seres mudos ou pré-verbais, apresentam tendência à ação e limites nas suas possibilidades de verbalização. Geralmente, não se dispõem a deitar no divã e a sair fazendo associações livres. Fazer essa exigência seria impossibilitar a psicanálise à criança, propõe então deixar a criança livre para se expressar da maneira como lhe convém, que ela fale de si da forma que puder.
Para Winnicot, o brincar é uma fonte de diálogo com as crianças: “Quando a criança não é capaz de brincar, é preciso trazê-la para um estado em que ela possa brincar”
Como afirma Roza:
“É através dele (o brincar) que se processa a organização do sujeito, que nasce e se desenvolve a linguagem, que se dá o aprendizado e o conhecimento do mundo. Via privilegiada de expressão e de apreensão da realidade, o brincar permite o acesso ao simbólico a aos processos de complexificação da vida” (p.20)

· Conceito
O brincar é uma forma universal de comportamento característico da infância, presente em todas as formas de organização social, das mais primitivas às mais sofisticadas. É uma atividade que transcende às necessidades biológicas, sendo um elemento da cultura cuja função é de representar a realidade. Está circunscrito num espaço e tempo, e apresenta regras. A brincadeira não está diretamente submetida ao brinquedo, porém, muitas vezes, um objeto pode sugerir o jogo ou mesmo ser completamente transformado para se adaptar aos interesses de uma brincadeira previamente estipulada. Um jogo pode ser adiado e até ser considerado supérfluo, porém, tem como característica fundamental a liberdade, deste modo, não poder ser imposto, é voluntário. Se virar uma obrigação, já não será mais uma brincadeira. Há, portanto, uma estreita ligação do brincar com o desejo.
Um dos motivos associados à tensão que o jogo pode provocar está ligado à incerteza, ao acaso que é inerente ao ato de se jogar. A imprevisibilidade pode fazer vínculo com a dimensão radical do ‘poder do destino’, e assim motivar reações passionais extremadas.
A característica mais instigante do ato da brincadeira é que ela é uma atividade não séria, uma evasão temporária da realidade e, ao mesmo tempo, um momento da mais absorvente seriedade. Momento em que há um distanciamento da realidade sem, no entanto, perdê-la de vista. O brincar é uma pré-disposição humana para a ilusão, ocorre no movimento pendular entre a magia, o irreal e a realidade, sendo uma conciliação entre o princípio da realidade e o principio do prazer.
· Brincando na psicanálise
O brincar é capaz de engendrar sentidos, produzir associações e assim proporcionar uma articulação com o significante lingüístico. É uma atividade que proporciona trocas entre os sistemas inconsciente/pré-conciente através da expansão da possibilidade de expressão da criança no plano simbólico, permitindo novas significações. Nesse sentido, o brincar é considerado constituinte da realidade psíquica, se aproxima dos devaneios e da criação artística mais do que do chiste e dos sonhos e não se restringe a expressão da sexualidade infantil. Nele estão presentes mecanismos como a figuração, a condensação, o deslocamento e o simbolismo. Todavia, o brincar, embora seja determinado por desejos inconscientes não é uma formação do inconsciente, nele a incidência da elaboração secundária é predominante, estabelecendo coerência e ordenação no seu conteúdo manifesto.
· O brincar e a interpretação
Para Winnicott a análise do brincar não é para ser restringida ao conteúdo do jogo. Brincar é, antes de tudo, um movimento, a ação de uma engrenagem que girará infinitamente no sentido de originar interpretações
Segundo Ferreira (1999) o jogo que não tem uma significação a ser desvelada pelo analista, mas sim faz irromper o significante. É o enlace entre o brincar e a palavra que interessa na clínica. Não se trata de excluir o brinquedo, mas tratá-lo como significante e não como símbolo. O jogo não tem significado, mas pode apresentar um sentido, e este só pode ser buscado na própria ‘expervivência’ da criança e articulado no encadeamento significante produzido no seu discurso. O brincar já é uma interpretação da criança em relação a sua realidade.
Mannoni (1995) acredita que dar às crianças a possibilidade de pintar, de inventar um mundo segundo suas idéias, permite que elas possam se expressar numa linguagem sem palavras o que as mortificou. O essencial é que possam encontrar meios de se exprimir. De fato, é importante que o analista não se apresse em dar um sentido de imediato, nem procure prematuramente reconstruir fatos, pois, a área de jogo, tem uma função decisiva por constituir o lugar onde o sujeito se interroga sobre o que ele é.
Segundo Roza, a intervenção do analista objetiva o andamento da cadeia significante. As observações do analista não se restringem ao plano da palavra, podem estar inseridas no nível do próprio jogo. Isto é não se limitar em interpretações da brincadeira, mas, sobretudo, interpretar na brincadeira. Brincar com a criança, sabendo que o que se está fazendo é coisa muito séria.
Após usar vários autores em muitos parágrafos para falar sobre o brincar, lanço mão do poeta que com poucas palavras traduz mais claramente esta expressão.

“O POETA é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente”
Fernando Pessoa

Do brincar a arte no Capsi Eliza Santa Roza

Apresento o testemunho do trabalho desenvolvido no CAPSI Eliza Santa Roza no qual a arte é incluída, articulando esta clínica com os postulados teóricos-práticos da psicanálise.
O brincar e o atendimento com os pais são modos de trabalho que especifica a clínica com crianças. Houve no Brasil, durante algum tempo, um descompasso em relação à compreensão do brincar. Enquanto alguns tenderam a substituir o discurso da criança pelo uso do brinquedo, outros, em oposição radical a essa prática, retiraram a possibilidade do brincar. Segundo Roza (1999), a experiência psicanalítica com a criança deve acontecer numa articulação do brincar com a verbalização. Incluir o brincar sem circunscrevê-lo como substituto da fala ou da associação livre, é fazê-lo capaz de engendrar sentidos, produzir associações e assim proporcionar uma articulação com o significante lingüístico.
Em suas reflexões sobre a atividade infantil Freud apresenta um claro vínculo entre o brincar e a expressão artística. No texto “Escritores criativos e devaneios” (1908), diz: “A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real”. Através desta afirmação, em conjunto com o corpo teórico do texto, entendemos que a brincadeira, banhada na fantasia expressa a realidade psíquica da criança. O brincar, como o sonho, é determinado por desejos inconscientes, nele estão presentes mecanismos como a figuração, a condensação, o deslocamento e o simbolismo. Porém, o brincar não é uma formação do inconsciente, nele a incidência da elaboração secundária é predominante, estabelecendo coerência e ordenação. Nesse mesmo texto, calcado na afirmação dos próprios escritores – de que eles não são diferentes da maioria das outras pessoas – Freud constrói a hipótese de que o elo entre o artista e o homem comum está na atitude da criança ao brincar, onde aparecem os primeiros traços de imaginação criativa. A criança ao brincar se comporta como um artista que reedita a realidade da forma que melhor lhe agrada. Tanto um quanto outro leva muito a sério essa brincadeira, nela investindo muita emoção. Ao mesmo tempo, sabem que tudo não passa de um acordo momentâneo de insanidade.
Foi este o ponto que deu início a pesquisa teórica-clínica que apresento. E é no contexto de sustentação do discurso psicanalítico no campo da Saúde Mental – onde se procura estabelecer uma clínica com rigor teórico, afinada com a ética psicanalítica – que me lanço no novo desafio de articular na prática a psicanálise com a arte.
Existem, no Capsi Eliza Santa Roza, dois espaços em que alguns efeitos interessantes vêm ocorrendo quando a arte vem se somar à psicanálise no tratamento psíquico. Um com pacientes adolescentes autistas, psicóticos e neuróticos graves e outro com pacientes mais novos de até onze anos autistas e psicóticos.
O primeiro inicialmente era chamado de ‘oficina de arte’. Esta oficina foi criada em um momento de reorganização do serviço, quando estava deixando de ser um ambulatório para se tornar um Capsi. A denominação ‘oficina de arte’ leva a muitos equívocos. Oficina é um termo utilizado para descrever inúmeras práticas terapêuticas, inclusive algumas nem tão terapêuticas assim. Muitas vezes é uma atividade dirigida onde a preocupação com o produto final se sobrepõe ao trabalho psíquico envolvido na ação. Foi por estas razões que fomos parando de nomeá-la ‘oficina’ e incorporando-a ao dispositivo de convivência que ocorre no mesmo momento. O dispositivo Convivência se assemelha a ‘prática feita por muitos’ que acontece em algumas instituições psicanalíticas, inclusive no exterior como Antenne e o Countril na Bélgica. A oficina ‘explodiu’, sendo incorporada por esta outra atividade, mas também a contaminou, levando para esse espaço mais amplo de atendimento, outros recursos que antes não eram utilizados. Ela é hoje um acontecimento aberto e livre à participação de quem estiver em tratamento no mesmo horário.
O conceito de arte que utilizamos não está relacionado ao de produção de obras de arte valorizadas socialmente. Mesmo que alguns pacientes apresentem um talento artístico especial, não é nesta direção que caminhamos. Inclusive, pode não haver um objeto ao final. Não existe nenhuma obrigatoriedade relativa à atividade, o que não significa dizer que não haja oferecimentos, porém, estes oferecimentos podem ser recusados, acrescidos ou mesmo trocados por outro. Este trabalho tem como princípio que incompatibilidade com a psicanálise não está em se oferecer ou não um material, e sim a maneira como este oferecimento é feito e as razões que o orientam. O oferecimento precisa estar ancorado na clínica do sujeito em análise e não em uma demanda do analista. Neste sentido podemos lembrar da psicanálise com crianças, pois nela o brinquedo é parte integrante da clínica. Entretanto, não dá para negar que muitos profissionais transformam suas sessões em ludoterapia ou pior, como um meio de domar as “pulsões endiabradas” de seus pequenos pacientes. Porém, o caminho para preservar o rigor da clínica psicanalítica não é o de retirar o brincar, mas o de sustentar sua importância e pertinência no tratamento, reconhecendo, com Freud, que o brincar é determinado por desejos inconscientes e representante da realidade psíquica, e que é na articulação do brincar com a verbalização que a função do analista implica profundamente o sujeito.

LACAN E A ARTE

Lacan não se contenta em apenas sustentar o lugar de aprendiz, ‘colegial’, em relação à arte, como supunha Freud. Afirma sermos, nós analistas, frente à arte, “catadores de migalhas”.[1] Lança mão do conceito de Coisa ou das Ding para articular a fórmula que irá, ao final, ordenar a função da sublimação. O termo já está em Freud[2] e Lacan o retoma como um conceito que designa o que aparece como estranho e alheio no ponto inicial do psiquismo.
Caminhando na direção da Coisa o sujeito reencontra outros objetos, já que, em última instância não existe O Objeto que suture sua falta originária. Lacan nos diz que Das ding escapa a significação, é indizível, “...essa Coisa, (é) o que do real (...) padece do significante”[3], o vazio no centro do real. A Coisa é a falta comum em todos. A Coisa é fundadora desejo. É na falta que a Coisa é reencontrada e remetida sempre a outra coisa.
Neste momento é necessário a introdução do conceito de objeto a, objeto causa de desejo, que diferentemente de das Ding, a Coisa, tem uma vertente real, outra simbólica e uma imaginária[4]. Razão pela qual Lacan o situa, no nó borromeano, naquela região de interseção dos três registros. Enquanto das Ding é o objeto da pulsão de morte, a face real do objeto a. Porém nós só temos acesso ao objeto a em sua vertente simbólica ou imaginária.
A Coisa será sempre representada por um vazio, nos diz Lacan ao teorizar sobre a sublimação. O autor retoma a proposta de Freud de que uma neurose obsessiva seria a caricatura da religião, um delírio paranóico um sistema filosófico distorcido (posteriormente o aproxima da ciência) e uma histeria uma obra de arte deformada[5] – e propõe que, em toda forma de sublimação, o vazio, como índice da Coisa, será determinante, permanecendo no centro; sublimar é elevar o objeto à dignidade da Coisa.
Lacan indica que há três modos diferentes de sublimação, três modos diferentes de se relacionar com o vazio: o da religião, da ciência e da arte.
No caso da ciência é necessário não se incorrer na precipitação de simplesmente dizer que o que há é a Verwerfung (foraclusão) do vazio. Mesmo sabendo que isso não é uma inverdade, é necessário maior rigor teórico. Em “Ciência e verdade” Lacan faz uma proposta radical ao situar o mesmo sujeito que foi para a ciência, em sua concepção moderna, como sendo o da psicanálise. Ele afirma que “o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência”[6]. O autor retoma os acontecimentos do século XVII em que Descartes através do cogito proclama um ‘rechaço de todo saber’, mesmo momento histórico que Galileu funda a ciência moderna instituindo uma fenda entre saber e verdade. O sujeito do inconsciente nasce ali naquele momento cindido. Não haverá mais, de agora em diante, a Verdade, agora ela vale como algo a ser refutado, a certeza estava para sempre banida, é não-toda. Enfim, foi a ciência que pela primeira vez tratou o real pelo simbólico. Entretanto, para se afirmar como um saber, a ciência precisou concretizar conceitos matematizados, lógicos sobre o real e deixou de lado sua descoberta, trazendo para seu centro outros referentes. Assim, o furo real que fora denunciado pela ciência ficou externo a ela, como algo sabido, porém paralelo.
No caso da religião, baseado no comportamento obsessivo, Lacan diz, inicialmente, que, há algo da ordem da evitação do vazio. Porém, não se satisfaz com essa explicação e prefere dizer que o que ocorre é um “respeito” a esse vazio. Esse respeito é traduzido como uma operação de deslocamento (Verschiebung)
Já a arte, para Lacan caracteriza-se por um certo modo de organização em torno do vazio[7]. Vazio que no centro do vaso, a partir da função artística mais antiga – a do ceramista – é exemplo do mistério da criação[8]. A arte tem como combustível esse vazio. O mesmo que a ciência ejetou e a psicanálise colocou em seu centro, a arte tem no início, no antes dela, como também em seu final, pois que ela não faz nada além do que expô-lo.
Antes do que é escrito pelo autor, o que se tem é um papel vazio. Do pintor uma tela em branco, do escultor um nada. Há um nada antes da criação artística. Um nada que incomoda, que pulsa, que insiste. Porém, ao terminar, a obra artística também não oferece consistência. Quando ela acaba, vira um resto, algo que não deu conta de dizer a que veio. A percepção de que a obra não diz tudo, que sempre falta algo, parece ser o motivo que leva o artista a nunca parar de criar, sempre outras obras igualmente insatisfatórias.
Qualquer objeto, e não algum idealizado, serve para ser elevado a dignidade da Coisa. Estranhamente, no mesmo momento em que o objeto é elevado à dignidade da Coisa é também destituído de sê-la. O objeto artístico “é instaurado numa certa relação com a Coisa que é feita simultaneamente para cingir, para presentificar e para ausentificar”[9]. A arte presentifica a ausência, expõe a falta, é o resto exposto que faz restar.
Lacan não tem problemas em concordar que as obras de arte imitam os objetos que elas apresentam, porém, explica que elas imitam sem representá-los, elas fazem outra coisa do objeto[10]. Para melhor explicar essa afirmação lembra Cézanne e suas maçãs. Quando ele as pinta, faz bem mais do que imitar maçãs, não deixa de presentificá-las, mas ao mesmo tempo ausentifica-as como maçãs, as tornando outra coisa. O artista ao criar, renova a relação da arte com o real, faz surgir o objeto em uma renovada dignidade.
Para expor a arte em Lacan escolhi dividi-la em três aspectos, a saber: 1º Arte como um Bem; 2º Além do Bem: o Belo; 3º Mais além do Belo: o Sublime e 4º Elo: A Arte Sinthomática. Esta separação só tem sentido didático. Apesar de possuírem fundamentos diversos elas não são nem excludentes e nem tão pouco possui cada uma delas a pretensão de reter o entendimento global da arte. Proponho que sejam lidas da mesma forma como se olha um caleidoscópio que transmuta o objeto visto pelo giro que é efetuado.
1º Arte como um Bem
Na primeira dimensão, a do bem, a arte é valorizada como um produto, um objeto a ser comprado, de valor comercial que obedece às leis de mercado tanto quanto qualquer outro objeto, estando inserido nas relações de poder dominantes na sociedade. Neste sentido a arte serve ao tamponamento do desejo, ao engano da satisfação. A arte como um bem de consumo, usada para ser exercício de poder e prestígio é, no mínimo, contraditória. Depondo contra si própria, a arte descaracteriza-se em sua essência, já que, em essência ela comporta o vazio. A expressão flagrante desta dimensão é a do carro último tipo que pintado em uma fábrica recebe a assinatura de Picasso. Eleva-se o objeto a dignidade da Coisa ou está se rebaixando a Coisa ao nível do objeto? Tudo é acessível para quem tem como comprar. Tudo está à venda e a felicidade é possível, embora custe caro. Princípios da sociedade que perverte a arte moldando-a ao discurso capitalista.
Se a moral está corrompida, menos ainda estamos submetidos a preceitos éticos na perspectiva da psicanálise. A ética, estando para além da moral não obedece a imposições sociais superegóicas. Aponta para o universal da diversidade, enquanto que o consumismo globalizado está disfarçado na ideologia do direito de ser diferente. A sociedade capitalista parece ter se apropriado das formas de rebeldia possíveis, no comportamento e na arte. Na contemporaneidade a arte parece tanto virar moda, quanto à moda muitas vezes se intitula arte. Ao contrário de outros tempos onde se exilavam os rebeldes anti-sociais, hoje se ‘fagocita’ a expressão revolucionária incorporando-a rapidamente.
Não é de hoje que a discussão sobre a crise na arte anima calorosos debates. Sem entrar no julgamento a respeito do valor artístico de suas atuais expressões, o que podemos perceber é que, sob esse conflito, vemos nascer uma arte que nos presenteia com o ininteligível, como se quisesse nos reimputar o espaço vazio que parece estar sendo foracluído pela ideologia de mercado. O que demonstra que a arte não pode manter uma relação harmoniosa com a sociedade capitalista.
A arte contemporânea cria objetos que estremecem os conceitos antes aceitos sobre o que é arte; engendra, mais do que criação, a dúvida, a discórdia, a impossibilidade de uma categorização consensual da arte; busca, com sua insubordinação, esburacar as certezas do mestre capitalista[11] na tentativa de recolocar a Coisa em posição central de falta e de se ver livre do enquadramento de ser um bem.
A denúncia da arte é que à falta comum a todos não se responde com um bem comum, posto que não há. Mesmo que não houvesse a exclusão social, a felicidade não poderia ser alcançada no próximo shopping, ou mesmo em nenhum lugar. O capitalismo, ou mesmo qualquer ideologia política propõe o bem para todos. E por isso mesmo se apresenta para o sujeito como uma barreira a seu desejo.[12] A arte não tem como efeito o bem do sujeito, aquele bem para próximo que também a psicanálise questiona – o bem concebido como o bem natural, na busca de uma harmonia a ser reencontrada no caminho da elucidação do desejo. Querer o bem do próximo como se ele fosse você mesmo é um contra senso, já que o anula como outro.
A relação da arte com o capital é tensa, o que não significa dizer que a arte, para continuar sendo arte, necessite evitar o reconhecimento social. Embora, muitas vezes por refletir seu tempo de forma antecipatória, só atinge reconhecimento em uma época posterior.
A arte ao se entregar ao princípio do bem, feita por encomenda para ilustrar paredes ou no reforço de ideologias, ou seja, para ser o que falta a quem se dispõe a tê-la, é aquela que é apresentada como estando “curada” da ferida que a constitui no enlace com o real. Ela foi “suturada” onde deveria estar aberta.

2º Além do Bem: o Belo
Para Lacan o belo é o último véu que nos protege do real. É um ponto de transposição, como ele próprio denomina. Esta articulação o leva a pensar as relações do belo com o desejo, onde a arte é vista para além do princípio do bem. O belo é a segunda barreira ao desejo, pois a primeira é o bem, que perverte totalmente o desejo ao se propor como resposta. Na dimensão do belo, mesmo sendo uma última rede de proteção ao real, há, porém, uma exposição a ele. Nesta dimensão, a arte bela está em uma fronteira, uma vez que ela ofusca o desejo com seu brilho e, ao mesmo tempo, estando no último passo frente ao abismo, indica que há algo além. Há na relação do belo com o desejo uma ambigüidade, por um lado parece que há uma extinção do desejo, pelo fascínio que o belo causa “pela zona de brilho e esplendor que o desejo se deixa arrastar”[13] , e por outro ele não é totalmente extinto pela apreensão da beleza, pois aqui não há o objeto, há uma enternecimento– a arte sustenta o desejo. A arte bela produz um efeito de regozijo a quem a olha. Porém, este é um efeito singular no sujeito e, mais do que isso, ele é indizível, intraduzível, intransmissível em totalidade, e por isso mesmo comporta o furo real.
O amor cortês é resgatado por Lacan como paradigma da sublimação e, mais particularmente, para formular sua concepção da arte em relação à Coisa. A poesia cortesã evidencia tanto a beleza como a crueldade do amor. É a principal expressão literária dos séculos XII e XIII, criação dos trovadores da Provença, região do sul da França, tendo dali se difundido para o resto da Europa.
Não é um acontecimento apenas localizado na estética, mas é por meio da arte que se tem notícia dele. Nasceu nas cortes feudais e desenvolveu-se como sensibilidade mundana, voltado para a valorização sensual do amor e da mulher. Há no amor cortês uma relação do objeto com o desejo que serve de modelo para Lacan. O amor cortês proporcionou a promoção do objeto feminino à função da Coisa. Sua poesia trata da relação entre uma dama casada e um homem celibatário que se interessa por ela. No amor cortês havia a escolha que o processo dos esponsais proibia, no entanto, o amante escolhia a mulher de outro. Não a tomava nem a força nem por acordos formais, conquistava-a perigosamente, vencendo pouco a pouco as suas resistências.
Lacan sublinha que o objeto feminino no amor cortês é introduzido pela privação, pela inacessibilidade. O jogo do amor só ocorre se existir uma barreira entre os amantes. É uma característica da cena que é imprescindível ao romance. Não são as qualidades que personalizam a dama. As trovas parecem ter sido, todas, escritas para a mesma pessoa. O pressuposto que marca a mulher é o de estar barrada àquele amor. [14] Não é que o amor cortês prescinda da satisfação, a questão, mais precisamente, é que ele se organiza na não satisfação. A instituição da falta na relação com o objeto é que constitui o amor ideal[15]. Isto é, a dama está no lugar de das Ding e é sua falta que move o sujeito. Mais do que isso, a dama (objeto imaginário) está encobrindo a falta (das Ding) com sua ausência (objeto a). Indo mais além, essa falta encoberta pela ausência é, enfim, revelada, via sublimação, pelo artista em sua poesia.

3º Mais além do Belo: o Sublime
Para além do belo está o sublime como dá a entender Ponce[16]. A antítese clássica entre o Belo e o Sublime pertence à filosofia. Porém o Sublime é um termo literário associado ao êxtase e à criação poética. Foi originalmente talhado por Longino[17] como efeito produzido pelo estilo de um orador ao comover sua platéia. Lacan, abalizado pela estética Kantiana, introduz como contraponto da experiência do belo, a do sublime e, por essa via, entende o mais além do princípio do prazer que se pode dar como efeito do contato com a arte.
No sublime não há uma contemplação agradável e sim a experiência de uma dilaceração. Não é possível estabelecer um acordo feliz entre a subjetividade e a imaginação, o que é indispensável para haver harmonia na impressão sensível. Há um conflito entre nós mesmos e o sensível. Para Ponce[18], enquanto o belo está vinculado à representação da qualidade, no sublime a vinculação é com a quantidade. Somos invadidos pelo espetáculo do sublime e nos reconhecemos impotentes frente a ele. A arte bela encanta, a arte sublime comove. Enquanto o sentimento do belo está referido a forma do objeto, o sublime pode ser encontrado em um objeto sem forma.
Ponce[19] descreve o advento da arte moderna como sendo o de instalar uma tensão entre a experiência de satisfação através do belo que encanta e a comoção proporcionada pela experiência do sublime. Vários autores já sublinharam que a arte do século XX e a psicanálise, por terem nascido na mesma época, compartilham um mesmo “espírito”[20]. Sublinham a semelhança entre a descoberta do inconsciente por Freud, que divide o sujeito definitivamente e a quebra na organização espacial tradicional, vigente desde o Renascimento, exemplarmente presente na pintura de Paul Cézanne. Porém, Ponce vai além ao propor que, com o divórcio entre a imagem e o sentido que ocorre na arte moderna, há uma quebra entre a obra de arte e o artista e o espectador. A arte parece ter ficado livre das amarras das convenções e exigências estéticas. Porém, do outro lado está o espectador, que jogado frente à obra de arte deriva em sua solidão. Ele é olhado pelo objeto artístico sem que possa lançar mão de um sentido protetor.

4º Elo: A arte sinthomática
A quarta maneira em que a arte é incluída na teoria lacaniana, não pode a rigor ser considerada com o mesmo enquadramento das outras três concepções.
A arte como um bem, arte bela e a arte sublime são conjecturas conceituais. O objeto de estudo é a arte que se mostra compreendida pela teoria. A arte como quarto elo contém uma mudança radical de enfoque. De maneira totalmente diversa, a arte comparece como um elemento importante na construção da própria teoria lacaniana acerca da estrutura subjetiva.
A constituição humana para Freud está ancorada nos ternários consciente/inconsciente/préconsciente e eu/isso/supereu; para Lacan, a subjetividade se constitui entre o simbólico, o imaginário e o real e está dividida entre saber e verdade[21].
É no intuito de evidenciar teoricamente a paradoxal constituição da subjetividade humana que Lacan se aventura pela topologia. E é com a ajuda desta lógica que ele procura demonstrar o indizível.
A topologia borromeana dos nós foi elaborada por Lacan a partir do emblema de uma família de nome Borromeu[22]. É uma figura onde há um entrelaçamento de três elos. O enodamento é tal que se um deles for cortado o laço todo se desfaz. O desenho foi providencial para Lacan demonstrar as relações entre o simbólico, o imaginário e o real. Foi possível expor a existência de uma equivalência de importância entre os registros e ao mesmo tempo demonstrar que cada um deles possui propriedades distintas. Os três elos do nó Borromeano têm diferentes predicados; no imaginário está situado o suporte da consistência, a aquisição da imagem corporal pelo sujeito; o simbólico tem o furo como sendo o que lhe é essencial, o que faz com que se produza diferença; e o real sua ex-sistência que é relativa ao impossível, a não existência da relação sexual, ao fato de que a articulação dos três registros não proporciona ao sujeito um Outro do Outro.
No Seminário RSI Lacan demonstra a importância de que um quarto laço venha realizar a função de manter o enlace entre os registros como também delimitar a necessária distinção entre eles. Esta hipótese é fundamentada nos conceitos freudianos do complexo do Édipo e de realidade psíquica e recebe de Lacan o título de Nome-do-Pai. Ocorre, porém que a constituição subjetiva não é estável, algo sempre falha e o que sempre falha, pelo menos em parte, é o Nome-do-Pai em sua simbolização do real pulsional. Os sintomas surgem como remendos na função paterna. O sintoma está no próprio lugar onde o nó rateia, onde está o lapso do nó[23]. No caso das psicoses a teoria borromeana sofre um complicador a mais, pois esse adoecimento psíquico se caracteriza pela não inscrição no campo do Outro do significante do Nome-do-Pai. Para o psicótico não é possível a construção de uma fantasia, uma frase simbólica que venha, através do gozo fálico, demarcar o gozo enigmático do Outro. Isto é, encontrar como sujeito sua resposta à demanda da mãe [24]. O que nos leva a considerar que na psicose, pela falta do Nome-do-Pai o nó se desfaz, há a eclosão do delírio e a invasão no imaginário.
Porém, a arte de James Joyce escritor irlandês que revolucionou a literatura, vem “embaraçar”[25] Lacan que o considerava psicótico.
Saussure nos ensinou que os signos antes de remeterem a qualquer coisa do mundo, remetem, quando se quer saber seu valor, a outros signos. Consideração da qual é retirada a descoberta de que a linguagem nasceu a partir da criação do recurso metafórico e, por isso mesmo, comporta como característica um mal entendido fundamental. É intrínseco à palavra ser portadora de um equívoco. Em contrapartida, há em algum ponto do discurso algo que não engana. Não é possível fazer funcionar a atividade discursiva sem o estabelecimento de um acordo mínimo, mesmo que arbitrário, de atribuição de sentido. Lacan analisa a escrita de Joyce, a descreve como tendo uma forma diferenciada de relação com a instância da letra. Destaca as Epifanias utilizadas por Joyce em seus livros como sendo testemunhas de um esvaziamento radical da capacidade de articular a experiência. Lacan explica que neste tipo de escrita onde trechos de conversas são retirados de seu contexto natural pelo autor e transferidos para dentro de seu texto, o Simbólico e o Real estão entrelaçados, mas o imaginário fica solto, fora, tornando incompreensível a mensagem, já que o sentido reside na interseção do Simbólico com o Imaginário.
A escrita de Joyce, de forma geral é não tributária do sentido, pois o que mais importava ao autor de Ulisses era a musicalidade das letras e das palavras. Os enigmas contidos em sua escrita não são de fácil desvendamento por carecerem de metáforas orientadoras. Ele manipulava a língua inglesa e neste jogo de letras, palavras e sons, acabava por produzir uma nova língua. A partir do que novos sentidos puderam ser construídos, mesmo não sendo estes muito compartilháveis. Joyce trabalhava diretamente no real da letra e deste trabalho extraia seu gozo.
No caso de Joyce, o quarto elo que produziu uma articulação capaz de sustentar sua estrutura psíquica não poderia ser o Nome-do-Pai. Lacan considera que foi a obra de Joyce que assegurou sua estabilidade psíquica, a responsável pelo não desencadeamento de um surto psicótico.
A estrutura de Joyce não pôde se valer do sintoma neurótico, como costura nas falhas presentes no Nome-do-Pai. No lugar do quarto laço Joyce teve que inventar o que Lacan chamou de Sinthoma. Para além de simples retificações ou emendas, o Sinthoma é ele próprio o laço. Lacan propõem que a escrita de Joyce, seu sinthoma, era sua forma privilegiada de gozo, um gozo que estava além da demanda do Outro.
No entanto Lacan acredita que o motivo pelo qual Joyce pode se salvaguardar de um surto não foi só sua possibilidade de utilizar a arte como barra à invasão no Simbólico pelo gozo do Outro, transformando este gozo em uma versão sua. Lacan acredita que foi fundamental para o equilíbrio psíquico de Joyce a construção de um nome próprio que adveio do reconhecimento público de seu valor artístico. E esta necessidade era claramente explicitada por Joyce quando ele dizia que faria os críticos, letrados, universitários e demais leitores ficarem ocupados com seus escritos por 300 anos. Lacan acredita que a valorização de seu nome próprio pelo mundo era como uma compensação onde houve uma demissão paterna. O Sinthoma de Joyce foi o de as expensas de seu pai, escrever seu nome no mundo através de sua arte, assegurando-lhe um lugar enquanto sujeito.
A direção do tratamento das psicoses adquire, com estas formulações, uma nova perspectiva. Até então a única possibilidade para a psicose era a constituição de um delírio. A escrita sinthomática de Joyce adiciona a possibilidade de construção de uma suplência ao Nome-do-Pai que não passa pelo delírio. Qual seja: a invenção pelo sujeito de seu sinthoma, sua forma singular de gozo. E, através desta construção, em uma escala que lhe seja possível, a inscrição de seu nome próprio no social. Essa operação possibilita que, por um lado se mantenha a falta, que é condição para o exercício da subjetividade e, por outro, garante uma atribuição de potência ao sujeito permitindo que ele não se defenestre nesta falta.
Com o quarto Elo deste arranjo sobre a arte na teoria lacaniana, o incômodo de Lacan, exposto no seminário 7, de reclamar um lugar maior para a arte do que a de ser uma professora do colegiado psicanalítico é aclarado. Somos mesmo ‘catadores de migalhas...’, é o que pensamos quando vemos surgir um Lacan que propõe que a arte possa ocupar o lugar de 4º Elo. O lugar do Nome-do-Pai. Fazer suplência desta falta. A arte, neste momento da teoria lacaniana assume a função de amarrar o simbólico , o imaginário e o real, proporcionando certo arranjo, mesmo que bastante singular, da subjetividade. Isto não é pouco, é talvez o que nós analistas tanto almejamos quando tratamos de sujeitos psicóticos em profundo sofrimento mental.

Bibliografia:
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_________. “Formulações sobre os dois Princípios do Funcionamento Mental” (1911) vol. XII, ibid
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___________. “Joyce e Lacan: algumas notas sobre escrita e psicanálise”, trabalho apresentado no simpósio Joyce-Lacan; Dublin, Junho de 2005. Irlanda. A ser publicado na Pulsiconel Revista de Psicanálise em dezembro de 2006.

[1] Lacan, J. – O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p. 289.
[2] Freud, S. – “Projeto para uma psicologia científica” (1895).
[3] Lacan, J. – O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p.149.
[4] Lacan, J. – O Seminário R.S.I.. (1974-75).
[5] Freud, S. – “Totem e Tabu” (1913 [1912 – 1913])
[6] Lacan, J. “Ciência e Verdade” (1965), in Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998. p. 871.
[7] Lacan, J. – O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p.162.
[8] idem, ibidem p. 151.
[9] Lacan, J. – O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p.176.
[10] idem, ibidem p.175.
[11] Referência a tese de doutorado de Giselle Falbo. “Para que serve? Quanto vale? Reflexões da psicanálise sobre a crise da arte.” UFRJ.
[12] Lacan, J. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p. 266.
[13] idem, ibidem. p. 302.
[14] idem, ibidem p.186.
[15] Lacan, Jacques. O Seminario, livro 4: La Relación de Objeto- La primacía del falo y la joven homosexual. (9 de Enero de 1957) em CD Rom.
[16] Ponce, X. G. – “Conferencia Sobre las Paradojas (contemporáneas) de la Satisfacción” . in: Ornicar? digital: liste des articles publieis, Online.
[17] Barbas, H. – O Sublime e o Belo, de Longino a Edmund Burke. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Departamento de Estudos Alemães http://www.fcsh.unl.pt/docentes/hbarbas/SublimeHBarbas.htm
[18] Ponce, Xavier Giner – “Sobre parejas modernas: el espectador y la obra del arte” in: sit internet: Ornicar? digital: liste des articles publieis. Online.
[19] Ponce, Xavier Giner – “Conferencia Sobre las Paradojas (contemporáneas) de la Satisfacción.”
[20] Entre outros: Rivera, T. op. cit. e Kon, N. M. – Freud e seu duplo: Reflexões entre Psicanálise e Arte.
[21] Porge, E. – Os nomes do pai em Jacques Lacan: pontações e problemáticas. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.
[22] Freire, M. M. – A escritura psicótica, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2001.
[23] Lacan, J. – O Seminário 23 – O Sinthoma CD Rom
[24] Freire, M. M., op. cit.
[25] Em espanhol engravidar.