domingo, abril 19, 2009

Sexualidade no Manicômio

Sexualidade no manicômio”[1]
Sandra Autuori[2]

Na primeira vez que entramos naquele lugar nossos sentidos foram invadidos pelo horror. Os olhos queriam se fechar para não ver os corpos desnudos, marcados por ferimentos, andando sem direção ou realizando movimentos repetidos, babas, cimento, ausência de cores. Os ouvidos queriam ser tapados para não escutarem os gritos e sons que não se assemelhavam a falas. Nossos narizes queriam não sentir o odor fétido dos excrementos humanos. No corpo o toque daqueles corpos se fazia sentir como um soco no estomago e a palavra “insuportável” queria escapar pela boca. Este momento quase rendeu todos os argumentos que havíamos construído. A idéia de que trabalhar em um hospital psiquiátrico era politicamente incorreto ficou bastante tentadora. Sim, “explodir com este tipo de instituição” era a melhor alternativa.
No Brasil, o fim dos anos 70 é marcado pelo término da ilusão do milagre econômico. Cai a máscara da falsa perspectiva de desenvolvimento econômico que vinha sendo apregoada pelo governo militar revelando a verdadeira face do Brasil. Não é mais possível esconder a deterioração das condições de vida da população brasileira. A crise político – econômica do governo Geisel força o início da retomada da democracia. O campo da saúde mental também é afetado. Por um lado a previdência social entra em colapso, provocado pela busca desenfreada por lucro dos empresários da loucura; por outro a abertura política põe a mostra o que até então estava guardado dentro dos muros do hospício. Pôde-se ver então a situação em que se encontravam e o tratamento dispensado ao louco. A herança dos anos 60.
O ponto em que se localiza o início da Reforma Psiquiátrica no Brasil é o da crise na Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam), ocorrida em 1978 na cidade do Rio de Janeiro, que colocou em debate a assistência presente nos hospitais psiquiátricos públicos. Divulgadas pelos trabalhadores de saúde mental, vêem a público denúncias da situação trágica em que se encontravam os hospitais psiquiátricos, os relatos de violências contra internos e os altos lucros concedidos ao setor privado.
Como fruto da luta política travada e também ajudados pela reconstrução democrática no país, em meados dos anos 80 participantes do MTSM (Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental) passam a participar de postos de chefia dentro do governo, em hospitais e universidades. O Movimento já não se restringe às bandeiras de luta iniciais de reivindicações por melhores condições de trabalho e pela humanização da assistência. A reforma psiquiátrica agora está orientada pelos princípios da destigmatização da loucura, a tomada da responsabilidade, a desmedicalização, o rompimento com a lógica manicomial/hospitalar, enfim a luta pela desinstitucionalização.
Mais do que desospitalizar, desinstitucionalizar visa quebrar com a lógica manicomial/hospitalar. Formar uma rede de serviços substitutivos e alternativos ao manicômio para a gradual e respectiva diminuição dos hospitais psiquiátricos. Entre os anos de 2003 e 2006 foram reduzidos 11.826 leitos. Entretanto, ainda restam no Brasil segundo o relatório de gestão 2003-2006 do Ministério da Saúde, 39.567 leitos em 226 hospitais psiquiátricos.
A população que ainda está internada nessas clínicas constitui um núcleo extremamente árido. Um mapeamento na clínica psiquiátrica em que trabalho revelou grande diversidade. Pacientes que apresentam concomitância com enfermidades orgânicas, autistas, retardo (sindrômico ou não), psicóticos, neuróticos graves, pacientes que foram acometidos pela psicose quando eram crianças (psicose infantil) e ainda alguns que não apresentam nenhum problema mental grave.
Os diversos “diagnósticos” têm em comum o fato de estarem em uma das três categorias de exclusão: (1) total abandono (nenhum familiar encontrável), (2) familiares social e ou psiquicamente mais comprometidos que os próprios pacientes, e (3) familiares que não se dispõem a morar com o paciente ou por ausência de vínculo afetivo ou outra indisposição qualquer.
No Rio de Janeiro só existe uma Residência Terapêutica onde moram pacientes que necessitam de média complexidade (cuidadores 24 hs) e nenhuma de alta complexidade. A maioria das Residências Terapêuticas (que ainda são em número bastante aquém das necessidades) é de baixa complexidade, para pacientes autônomos em suas rotinas diárias.
No Brasil trabalhamos também com a grave constatação de que a transformação do manicômio em mau negócio, não rentável, com a baixa remuneração para as internações psiquiátricas não ficou submetida à construção da rede substitutiva. Assim, a miseralização do manicômio acabou por penalizar os pacientes que sofrem com essa medida tão ou mais do que os donos.
O hospital psiquiátrico parece ser uma fábrica de desafios e a psicanálise em sua vocação de não fugir dos desafios clínicos se coloca disponível ao “intratável”, ao “insuportável”. Aliás, a psicanálise foi talhada, em sua origem, no preceito de tratar o que não tinha tratamento, na época as histéricas. Histéricas que com seu mal localizado em um corpo não acessível à medicina já denunciavam o corpo sexual.
A sexualidade humana na teoria freudiana não pertence à biologia e não é regida igualmente pela mesma lei natural das outras espécies animais. Não há o instinto com sua programação geneticamente pré estabelecida. Não há objeto adequado. Foi necessária a construção do conceito de pulsão para nomear o que especifica a humanidade e permitir a elaboração teórica de suas vicissitudes, tão singular nessa espécie. A sexuação é então o caminho que o sujeito traça ao construir sua singular posição sexual. O motor, ou melhor, o combustível que o impele é a não inscrição da diferença sexual no inconsciente. O sujeito terá que atravessar a castração. O sujeito não nasce, não se desenvolve, o sujeito se constituí.
Voltemos ao manicômio. O foco deste trabalho não está, prioritariamente, nos conflitos psíquicos dos asilados e seus possíveis efeitos em sua sexualidade. Isso seria um abuso. Seria dar as mãos para a crença de que a manifestação da sexualidade do louco internado é uma disfunção do seu corpo ou um processo patológico que o diferenciaria do padrão de normalidade. Seria tratar a expressão de seu desejo sexual como mero sintoma de uma enfermidade psíquica.
A Instituição responde a atividade sexual de seus pacientes de forma bastante determinada. Inicia com operações discursivas menos violentas, diálogos para convencer que o sexo não deve ser realizado nas dependências do hospital, se o “diálogo” (monologo) não é eficaz existem as medidas disciplinares, contenção física e medicamentosa. Os psicofarmacos que tem ação “dessexualizante” são muito utilizados para evitar a violência explícita, cala-se o sujeito sem se sujar as mãos. O preço, porém, para o paciente é muito alto. O remédio quando usado em quantidade inadequada pode impedir, na paranóia, a construção narrativa do delírio, e uma possível estabilização psíquica. O sintoma extirpado não deixa pista nem sinal para a escuta da subjetividade.
Deve haver outro caminho que não o da patologização da expressão sexual do interno para sua compreensão.
Dirijo a atenção para A Instituição psiquiátrica, já que o que há de comum a pacientes tão diversos é estarem institucionalizados.
Na clínica psiquiátrica há um saber constituído sobre o funcionamento mental que se mostra bastante impermeável. Um saber que é uma mistura do saber médico tradicional organicista, com uma psicologização travestida de especialismo e uma boa dose de tratamento pedagógico. Algo que poderia lembrar o tratamento moral na pior vertente desse modelo
Uma instituição funciona como uma engrenagem aonde se estabelece rotinas que se repetem sem que haja nenhuma problematização. As práticas exercidas sustentam a idéia de que não há muito que se fazer, tudo que foge a rotina é visto como o que tem que ser abolido. Há um ambiente de morte, pois a ausência de novidade é a melhor notícia, podemos ler nos prontuários: “Sem intercorrências, paciente calmo e cooperativo”. As “condutas” fazem lembrar a cena do filme “Tempos Modernos” de Charles Chaplin, em que Carlitos, operário em uma fábrica, aperta parafusos. O tempo é todo ocupado com as rotinas diárias, não sobrando tempo para mais nada. Parece uma linha de montagem. Quebrar essa máquina, fazer a engrenagem parar de girar ou fazê-la girar na direção oposta a qual a inércia a mantém girando é um objetivo principal de uma atuação/intervenção institucional.
O manicômio é uma instituição total, assim nomeada por Goffman, que tutela o louco regulando sua vida e seu destino. Violenta o paciente com seu excesso e o reduz a condição de objeto. Com o esvaziamento de sua subjetividade, sua humanidade se reduz a um corpo, que suportará processos disciplinares que visam o reconstruir não como sujeito e sim como indivíduo.
Por outro lado, com o asilamento há o rompimento radical dos laços sociais. Sabemos que a dimensão social é essencial à constituição do sujeito do inconsciente. Sem a entrada na ordem social a partir da família ou substitutos não é possível se tornar humano, a humanização não é uma atribuição natural da espécie.
Dentro do manicômio o interno é considerado como desprovido de valor contratual. O manicômio é nomeado por Basaglia como lugar de troca zero. Mesmo quando não há violência física de contenção ou medicamentosa, o próprio cuidado é invasivo. As rotinas diárias com suas práticas que sustentam a lógica hospitalar desconhecem qualquer singularidade, transmutando o sujeito em corpo doente a ser cuidado. Mesmo na versão humanizada do manicômio o que se pode encontrar, na melhor das hipóteses, são ações que se ancoram no saber sobre o que é melhor para o paciente. Violência velada, poder disciplinar travestido de boas intenções.
O corpo patológico é também nomeado de doente mental e é objeto da psiquiatria. É um resíduo do processo de destituição simbólica revestido pela linguagem médico-psicológica. Para que se estabeleça uma dinâmica na economia simbólica da instituição psiquiátrica asilar é fundamental a existência do corpo anátomo-patológico. É necessária a representação do corpo doente no imaginário do manicômio, para legitimar o tratamento mental com suas medidas disciplinares de gratificação ou punição ordenadoras do comportamento e a medicalização quase sempre em quantidade superior a necessária. Há um corpo a ser curado que justifica todo o trabalho de destituição subjetiva, e a cura é sinônimo de domesticalização.
Porém, o corpo ainda pulsa... Resiste, e onde há resistência há sujeito. O objeto que resta também para o interno é seu próprio corpo, e é dele que ele faz uso. Para fugir da sua mortificação subjetiva (efeito da instituição total) o sujeito exercita sua sexualidade. Sua resistência a ser domesticado nesse âmbito parece querer mostrar quem é o dono do corpo afinal. A psiquiatria se refere ao comportamento sexual dos internos como sendo inadequado. Inadequado é restringir o sujeito no ponto mesmo que o faz sujeito e querer que ele a isso não responda.
O hospital psiquiátrico por ser uma instituição total de tutela do louco, uma máquina com rotinas diárias de linha de montagem e medicalização, que trabalha no excesso, que destitui toda subjetividade e promove o rompimento radical dos laços sociais, por ser o lugar da troca zero é totalmente inadequado para um tratamento psíquico, é iatrogênico.
A sexuação, como vimos, é a dimensão essencial do sujeito e o asilado é destituído de sua sexualidade. Sua insubordinação, sua insistência na prática transgressora, às vezes violenta, rebelde, às vezes escondida, cada qual com seu estilo, têm a intenção da restauração do lugar de sujeito, mesmo que por um breve momento. Através do sexo ele insiste como sujeito.
A instituição psiquiátrica total, dona do destino do paciente, que o trata apenas como um corpo de necessidades, que opera no excesso, parece funcionar como o grande Outro não barrado que invade o sujeito com seu desejo que é uma ordem. A atividade sexual insiste, mesmo quando a instituição usa todo o seu poder para impedi-la. Ela é uma reação a subtração do sujeito. E ele insiste no ponto mesmo onde pode se constituir, marcando a humanidade de seu corpo sexuado.

Referências Bibliográficas
AMARANTE, P. – Loucos pela Vida: A trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Panorama/ ENSP, 1995.

AUTUORI, S – Clínica com Arte: Considerações sobre a Arte na Psicanálise. Dissertação de mestrado. UERJ – 2005.

BASAGLIA, F – A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Edições Graal. Rio de Janeiro, 1985.

BIRMAN, J – Sexualidade na Instituição Asilar. Edições Achiamé Ltda. Rio de Janeiro, 1980.

ELIA, L. – O Conceito de sujeito. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2004.

FOUCAULT, M. – Dits et écrits 1954-1988 II 1970-1975. Éditions Gallimard. Paris,1994.

______________ - História da sexualidade I: A vontade de saber. Edições Graal. Rio de Janeiro 1988.

______________ - História da loucura na Idade Clássica. Editora Perspectiva S.A. São Paulo, 1978.

FREUD, S. “O Mal estar na civilização” (1930), vol. XXI In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Ed. Standard Brasileira. Imago.

LACAN, J. – De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1998.

_________. O seminário, livro 3: As psicoses. (1955-56). Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1988.
[1] Apresentado no Simpósio da Intersecção Psicanalítica do Brasil no Rio de Janeiro em Setembro de 2007. Texto publicado no livro “As Identificações e a Identificação Sexual”, Mourão, A. & Lima, Nogueira M. (org.), Rio de Janeiro: Campo Matêmico, Companhia de Freud.
[2] A autora é mestre em psicanálise pela UERJ, supervisora clínica-institucional da Clínica Psiquiátrica das Amendoeiras, membro da equipe da unidade de serviço de saúde mental municipal CAPSij (Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil) Eliza Santa Roza.