sexta-feira, maio 01, 2009

"Escritoes criativos e devaneios" Um pouco mais que uma resenha

O texto “Escritores criativos e devaneio” (1908 [1907])[1] é de rara importância para o tema arte e psicanálise por esta razão resolvi tecer alguns comentários e considerações.
Freud, no texto acima citado, se ocupa em pesquisar o processo criativo. Mais precisamente, ele quer entender o que determina ao escritor criativo sua escolha de material e os efeitos desta no leitor. O que o auxilia a talhar esta construção teórica é o desvelamento do fantasiar.
Calcado na afirmação dos próprios escritores, que eles não são tão diferentes da maioria das outras pessoas, constrói a hipótese de que o elo entre o artista e o homem comum está na atitude da criança ao brincar.
Freud compreende que o desejo que determina o brincar da criança é o de tornar-se adulto. Desejo que é regido pela ilusão de que o mundo adulto irá proporcionar a realização de suas fantasias. O artista, por sua vez, já não possui mais essa ilusão e, através da criação artística, empreende uma realização imaginária. A criança ao brincar se comporta como um artista que reedita a realidade da forma que melhor lhe agrada. Tanto um, quanto o outro, leva muito a sério essa brincadeira, investe muita emoção. Ao mesmo tempo sabem que tudo não passa de um acordo momentâneo de insanidade, a realidade está presente, mesmo que em suspenso.
Há, neste ponto do texto, uma afirmação, parente de muitas outras em Freud, que favorece aberturas fantásticas para o pensamento de quem as lê. Ele diz: “A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real[2]”. É possível, através desta afirmação, em conjunto com o corpo teórico do texto, realizar reflexões sobre o que parece estar sendo indicado: que a realidade não deve ser levada mais a sério do que a brincadeira, pois a brincadeira está vinculada à fantasia do sujeito e é uma interpretação da criança em relação a sua realidade. O brincar, como o sonho, é determinado por desejos inconscientes, ele é constituinte da realidade psíquica, nele estão presentes mecanismos como a figuração, a condensação, o deslocamento e o simbolismo. Porém, o brincar não é uma formação do inconsciente, nele a incidência da elaboração secundária é predominante, estabelecendo coerência e ordenação no seu conteúdo manifesto. Enfim, o que importa sublinhar, é a operação efetuada por Freud de distanciar o sério da realidade, aproximando da realidade psíquica a brincadeira banhada pela fantasia. Podemos, então, intuir que a discussão sobre a criação artística e o brincar em relação à realidade, obrigatoriamente, infiltra a questão da realidade psíquica.
Freud, realmente, neste texto, aproxima o ‘brincar’ infantil do ‘fantasiar’, estabelece que a única diferença é que, na brincadeira, a criança constitui conexões com coisas visíveis do mundo real.
Para sustentar sua hipótese, Freud lança mão da linguagem, recordando palavras alemãs. Nos conta que a palavra ‘Spiel‘ (peça) da nome às formas literárias que são necessariamente ligadas a objetos tangíveis e que podem ser representadas. Relata que as palavras ‘Lustspiel‘ ou ‘Trauerspiel‘ (comédia e tragédia) significam literalmente, ‘brincadeira prazerosa’ e ‘brincadeira lutuosa’ e que os atores são chamados de ‘Schauspieler’ que pode ser traduzido por ‘jogadores de espetáculo’.
Defendendo que é muito difícil abdicar-se de um prazer, Freud teoriza que em substituição da brincadeira, aparece, na adolescência, o devaneio que, como a brincadeira, é determinado por desejos. Porém, as fantasias motivadoras, por serem de cunho erótico-ambiciosos, são escondidas, veladas, sentidas como vergonhosas. Ficar a devanear não é bem aceito, é considerada uma ‘atitude infantil’, se espera de um adulto que ele possa se inserir e conquistar seu espaço no meio social.
Freud esclarece que tomou conhecimento da existência dos devaneios em sua clínica, ouvindo seus clientes, que por necessidade revelam “aquilo de que sofrem e aquilo que lhes dá felicidade[3]”. Esta é mais uma perola contida no texto, colocada displicentemente, da qual não posso deixar, ao menos um pouco, de me deter. O sintoma é dito como algo que produz sofrimento mas, ao mesmo tempo, ele causa um tipo de felicidade, um gozo. O que dá maior peso a essa afirmativa é o que vem a seguir. Freud nos conta que esses mesmos devaneios de seus pacientes estão presentes em pessoas saudáveis e, para arrematar, no parágrafo seguinte, estabelece a tese de que a pessoa feliz nunca fantasia, somente a insatisfeita. São muitos os canais abertos pelas articulações expostas. Porém, só para não deixar totalmente sem reflexão as idéias pelas quais sou tomada, minimamente gostaria de apontar duas ponderações que se apresentam como possibilidades: primeiramente e paradoxalmente a felicidade está relacionada ao gozo neurótico ou sintomático e a insatisfação incluída no que é saudável; em segundo lugar também percebemos que a fantasia comparece tanto no gozo sintomático quanto no que, ao mesmo tempo, revela o desejo do sujeito oriundo da insatisfação constituída por uma falta.
Volto a limitar-me ao texto mais estrito. Nele, Freud a partir da premissa de que as forças motivadoras da fantasia são os desejos insatisfeitos, estabelece que toda fantasia é a realização de um desejo. Assim, tanto os sonhos noturnos quanto os devaneios são realização de desejos.
Freud repete a fórmula, já utilizada no estudo de sonhos, para a compreensão da construção da fantasia e do devaneio, validando-a também para o processo de criação do escritor literário. A fórmula estipula que há três tempos neste trabalho mental – alguma ocasião motivadora no presente desperta um dos desejos principais do sujeito, que retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando um devaneio ou fantasia, podendo proporcionar em um artista a produção de uma obra literária. Freud, ao finalizar o caminho da criação, constrói uma das frases mais bonitas deste trabalho: “Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une[4]”.
No intuito de consolidar o vínculo proposto entre o devaneio e a criação literária, Freud estabelece uma distinção, separa os escritores que utilizam temas preexistentes daqueles que parecem criar o próprio material. Nos primeiros, através das criações mais populares, assemelha o herói – aquele que aparece protegido pela providência divina – à ‘sua majestade o ego’ tal como pode ser reconhecido nas fantasias. E defende que, mesmo nos romances menos ingênuos, como por exemplo os ‘excêntricos’e os ‘romances psicológicos’, as mesmas estruturas que sustentam a história, podem ser observadas nos devaneios. Freud prega uma proximidade entre o herói que os escritores gostam de criar, o herói que as crianças vivem em suas brincadeiras, e a atitude do espectador/leitor em catarse com esse herói.
Para os autores que trabalham em obras imaginativas que não são suas criações mas reformulação de material preexistente, Freud ressalta que, mesmo assim, o escritor conserva grande independência tanto na escolha do material quanto na alteração do mesmo. Chega a postular que os mitos possam ser “vestígios distorcidos de fantasias plenas de desejos de nações inteiras[5] .”
Para finalizar o enlace entre os devaneios e a literatura, Freud se põe a pensar de que modo as mesmas fantasias que causam repulsa podem, quando transformadas em obras de arte causarem tamanho prazer. Para esta questão ele propõe três vias: a primeira, já pincelada a cima, diz respeito à obra literária que, sendo ela irreal, possibilita que o leitor sinta o que é proibido na realidade; a segunda via é a capacidade que o escritor tem em suavizar o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, nos subornando com o prazer estético; a terceira via vem completar o que foi alinhavado nas duas ramificações anteriormente expostas, Freud propõe que, através do ‘prêmio de estímulo’ ou do ‘prazer preliminar’ – aquele conseguido pelo recurso formal utilizado pelo autor – ocorre a liberação de um prazer ainda maior, proveniente de fontes psíquicas mais profundas: as obras artísticas liberam o leitor/espectador para se deleitar com seus próprios devaneios, livre da culpa e da vergonha.
Freud encerra o texto reconhecendo que muito ainda resta a ser pensado sobre o processo artístico. Realmente, em seu percurso para criar uma nova ciência, retorna ao tema diversas vezes com diferentes enfoques. Por essa razão foi, por muitos autores, acusado de ser contraditório em relação à arte. Porém, talvez sua ambigüidade seja o reflexo de um pensamento dialético que se evidencia quando Freud combina arte com sua investigação teórica-clínica.
Este ponto de vista não tem como finalidade justificar ou buscar uma compreensão do pensamento freudiano dentro de uma perspectiva coerente, ao contrário, parece haver, em relação à arte, a necessidade de se suportar contradições.
O desfilar de ângulos de visão tão diferentes, contidos no decorrer da obra de Freud, parece mesmo apontar para que não há uma visão definitiva, não há uma verdade última que abarque o total desvelamento do que seja a arte. O que existem são pontos focais que surgem dependendo de como olhamos. Mesmo porque a arte não se deixa abocanhar por qualquer explicação, por isso mesmo, nem uma das formas de entendê-la, nem todas juntas, são definitivas.
Porém, o texto “Escritores criativos e devaneio” se mantém como referência para quem quer estudar as relações entre arte e psicanálise. Nele aparece uma das facetas principais do olhar do pai da psicanálise sobre a arte. Freud procura entender o mecanismo da fantasia a partir da ficção e, assim estabelece uma relação cardeal entre psicanálise e arte: o processo da criação aparece colocando em questão o funcionamento psíquico, as noções e compreensão do sujeito. Enfim, a arte é um foco de luz a iluminar os processos psíquicos para psicanálise.
[1] In Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Ed. Standard Brasileira, vol.IX Rio de Janeiro, Imago. 1976.
[2] Pág. 149
[3] Pág. 152.
[4] Pág. 153
[5] Pág 157

Um comentário:

Unknown disse...

BEM bacana o post.